(Cargo, IND, 2019)
Um filme que parte de uma das histórias mais influentes da mitologia hindu e chega à ficção científica não parece muito viável, mas a diretora indiana Arati Kadavi não só mostra que é possível como o faz com muita sensibilidade e cuidado. Em A Bagagem estão o carinho pelas contos tradicionais e o questionamento, ou melhor, a reinterpretação de dogmas sobre o vida e morte.
O longa, estreia desta semana na Netflix, consegue equilibrar o humor e a melancolia. Diferente da maioria da produção conterrânea, tem especial apreço pelo silêncio e dá espaço às divagações. De maneira consciente, o tempo transcorre de forma suave, por vezes lento, por vezes repetitivo. É um filme que se preocupa com detalhes e quer dar espaço a todos eles.
A história se dá em uma nave espacial para onde são enviados os recém-falecidos para serem curados, terem suas memórias apagadas e voltarem em uma nova encarnação. Depois de 70 anos fazendo o trabalho sozinho, Prahashta tem que aprender a conviver com uma nova colega, Yuvishka. As diferenças de comportamento e na relação com a função são óbvias, mas há todo um trabalho de destacar visualmente a mudança de ciclo.
A estética de sci-fi setentista contraria a velocidade das comunicações pelas redes sociais. A barrinha no canto que avisa que o vídeo vai começar após o anúncio, ou o canal da influencer Yuvishka contrastam com o monitor de tubo com que Prahashta se comunica com a Terra. Poderia ser apenas uma questão geracional, mas Kadavi está interessada na interpretação do mito, em sua modernização.
A Bagagem é coalhado de referências ao Ramaiana. Resumindo, este é o primeiro e um dos dois mais importantes épicos da Índia (o outro é o Mahabarata), escrito pelo poeta Valmiki, e que até hoje influencia cultural e eticamente não só povo indiano, mas todo o sudeste asiático. A história conta a jornada de Rama para salvar sua amada Siba, raptada por Ravana, rei demônio do Lanka.
Agora vamos chegar ao filme. O primeiro transporte aéreo de Ravana chamava-se Pushpak, o nome da aeronave pilotada por Prahashta na ficção científica. Na mitologia, ele foi o maior dos guerreiros do exército do malévolo rei, mas, ao mesmo tempo, como diz seu nome, ele é “aquele que estendeu a mão”. Ressaltar esse lado já é uma subversão da realizadora.
Ficando apenas no Ramaiana, porque se o texto enveredar pelo Mahabarata e as reencarnações do personagem vai ficar gigante, Prahashta é um rakshasa, um demônio, assim também nomeado no longa, que, na mitologia, faz as pessoas pedirem proteção (“Rakshama!” em sânscrito quer dizer proteja-me e foi isso que o próprio criador do ser, Brahma, gritou ao quase ser devorado por ele). Se toda a discussão filosófica do filme trata da morte, do fim, nada mais natural do que pedir proteção nesse momento.
Embora esteja sempre colada na mitologia clássica, a diretora a ressignifica, moldando-a a uma narrativa moderna e humana. O peso da solidão, da empatia, da própria humanidade se apresenta nas lendas e no real. É como se fosse possível vislumbrar, em duas horas, toda a interferência humana na configuração de seus mitos. Com o passar do tempo tudo se transforma, ao ponto de não se saber mais o que há de Valmiki hoje em dia. Yuvishka faz isso com Prahashta; Kadavi faz isso com tudo.
A Bagagem é uma grata surpresa. Esteticamente elaborado, bem fotografado, com boas atuações e consciente do tempo reflexivo que necessita para se desenvolver, impressiona não apenas por embarcar em mitos e construções narrativas, mas também fazer pensar em questões bem profundas, sem nunca pesar a mão.
Um grande momento
A caixa de ferro.