Série em Cenas

Tremembé

A cela da curiosidade

(Tremembé, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Criador: Vera Egito, Ulisses Campbell
  • Elenco: Marina Ruy Barbosa, Bianca Comparato, Carol Garcia, Felipe Simas, Kelner Macêdo, Lucas Oradovschi, Anselmo Vasconcelos, Letícia Rodrigues, João Pedro Mariano, Vinícius de Oliveira
  • Duração: 50 minutos

Tremembé, nova produção brasileira do Prime Video, parte de um terreno fértil e perigoso ao mesmo tempo. Um lugar que concentrou rostos e nomes que o país reconhece de manchetes vira cenário de ficção, e o resultado aciona algo antigo no espectador: a vontade de olhar por trás da porta, de decifrar o cotidiano de quem virou símbolo, mesmo que tenha sido de símbolo de algo bem ruim. O gênero trabalha a favor. True crime é hoje um dos gêneros mais populares, um hábito de consumo que mistura informação, fofoca e rito macabro. Não é preciso explicar a atração, ela se impõe sozinha. A diferença na série de Ulisses Campbell e Vera Egito é como a encenação transforma essa curiosidade em experiência, como trata o crime não como catálogo de atrocidades, mas como matéria de uma dramaturgia que sabe que cada escolha carrega poder e sentido.

O dispositivo é simples e eficiente. Reunidos no mesmo espaço de confinamento, personagens que a opinião pública já julgou e condenou precisam existir para além do rótulo. Nas visitas, nos corredores, no cotidiano, a série negocia o choque com a banalidade, o excepcional com o repetido. Há uma aposta clara no gesto de humanização, não como absolvição, mas como método de dramaturgico. Ali, o sistema prisional deixa de ser pano de fundo para virar campo de forças, um lugar onde corpos e narrativas disputam espaço. Quando a câmera recorta olhares e pequenos rituais, quando dá tempo para que o silêncio crie tensão, as escolhas estéticas encontram coerência e o espectador entende que está sendo convocado a pensar imagem e poder, não só a reviver o crime como espetáculo.

O sucesso é previsível porque o ponto de partida já carrega uma mitologia. Cada nome famoso traz um arquivo íntimo e midiático que Tremembé conhece e manipula. Os crimes de Suzane von Richthofen e dos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos, o caso Isabella Nardoni envolvendo Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, o homicídio de Marcos Kitano Matsunaga por Elize Matsunaga e os abusos cometidos por Roger Abdelmassih formam a espinha desse universo. Uma galeria de histórias que o público brasileiro aprendeu a consumir. Essa vantagem, porém, cobra preço. Em certos momentos, a encenação se apoia demais no reconhecimento imediato e flerta com a reencenação ilustrativa, como se bastasse reproduzir ícones para garantir densidade. Entende-se a opção pela preservação das vítimas, mas há passagens em que a dramaturgia busca costuras apressadas e o detalhe de bastidor minimiza uma complexidade que mereceria espera. Ainda assim, a curiosidade do público não só resiste como aumenta, porque a estratégia central é a do acesso. A sensação de proximidade com figuras tratadas como inacessíveis continua sendo motor narrativo e comercial.

As irregularidades existem e aparecem em diferentes camadas. Há oscilações de tom entre capítulos, hesitações na construção de certos arcos, deslizes de verossimilhança que por vezes cedem espaço a soluções fáceis. O equilíbrio entre crítica social e novelização do horror nem sempre se sustenta e o desenho de personagens secundários varia entre o interessante e o esquemático. Mesmo assim, a série sobrevive porque compreende a gramática do gênero e sabe administrá-la. Quando aposta no cotidiano do cárcere, quando expõe o jogo de versões e manipulações, quando assume que ninguém ali é narrador confiável, reencontra foco. O interesse se mantém porque o dispositivo continua funcionando e porque o espectador, capturado pela promessa de bastidor, topa atravessar falhas em troca de mais acesso.

Há uma camada ética que o projeto não pode ignorar e, em alguns pontos, encara. A encenação precisa lidar com a distância entre justiça e entretenimento, com a tentação de transformar dor em produto, com a responsabilidade de reexibir imagens que já foram exploradas até a exaustão. Quando Tremembé escolhe o corpo como medida e evita o didatismo punitivo, quando reage à curiosidade com forma e não com truque, estabelece limites. Não demoniza nem absolve, recusa a pedagogia da revanche, o que, por si só, é um gesto político. Falta, aqui e ali, maior rigor no enquadramento institucional, uma atenção mais consistente à máquina que produz celebridade criminosa e capitaliza em cima dela, mas o caminho está desenhado.

O elenco sustenta o pacto. Destacadas, Marina Ruy Barbosa consegue trazer as oscilações à figura de Suzane von Richthofen; Bianca Comparato é contida em sua Anna Carolina Jatobá; Carol Garcia faz uma Elize Matsunaga que trabalha o cálculo e a fissura; Anselmo Vasconcelos encontra o cinismo de Roger Abdelmassih, e Letícia Rodrigues se transforma dentro da transformação com Sandrão, figura-chave nas dinâmicas internas. Tanto a encenação quanto o roteiro buscam a intimidade com economia, sem frases de efeito nem sublinhado moral. A direção escolhe a proximidade sem se render ao sensacionalismo de primeiro plano constante, alternando clausura e circulação, e encontrando uma estética que traduz a rotina como labirinto. Quando o som de fora invade, quando a luz do pátio interrompe a constância das celas e as visitas chegam, há um desenho de mundo que respira para além do caso notório e devolve a dimensão de estrutura.

Tremembé funciona porque compreende o tempo em que nasce. Entre a fome por histórias reais e a saturação de produtos que se repetem, apresenta uma disputa que ainda mobiliza. Pode ser desigual, pode tropeçar em atalhos, mas continua interessante porque mexe em um dos pontos-chaves da cultura atual: o desejo de conhecer o proibido e a promessa de ver o que estava encoberto. Essa força é o que faz resistir às falhas, atravessar irregularidades e sustentar a audiência. É ela que prende o olhar e transforma cada caso em conversa e cada crime em história para contar. É infalível.

Melhor episódio
T01E04: Acerto de contas

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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