- Gênero: Animação
- Direção: Anca Damian
- Roteiro: Anghel Damian, Anca Damian
- Duração: 92 minutos
-
Veja online:
A pandemia prendeu todos em casa, mas como controlar a ansiedade infantil em tempos de confinamento? Os streamings parecem ter descoberto a resposta injetando animações em seus catálogos quase semanalmente. É óbvio que mudam os perfis da Netflix para o Belas Artes à la Carte, por isso o segundo apresenta ao público algo mais reflexivo que Din e o Dragão Genial. Chegando hoje no Belas Artes À La Carte, A Fantástica Viagem de Marona, dirigido pela romena Anca Damian, é uma produção francesa que passou pelo maior festival de animação do mundo (o de Annecy) e estreia no Brasil com uma premissa que, a princípio, já aventou filmes de live action anteriormente; olhando com mais atenção, salta da tela tudo que o longa tem pra dizer.
A personagem-título é uma cachorrinha que enfrenta uma jornada impressionante que na verdade não passa de uma vida normal de um animal como ela, nas condições que ela se encontra – abandonada à própria sorte. O que a diretora e sua co-roteirista trazem de novo, e configura-se como material reflexivo, é a inserção de questões tipicamente humanas à sua história. Com a sensibilidade conseguida em um ambiente familiar, com a inteligência de um projeto tipicamente romeno, e a urgência de discurso que qualquer filme deveria almejar hoje, o longa encantará crianças por seu colorido exótico, mas calará muito fundo o adulto que não encontrar hoje um sentido para fabular.
Logo no início, o machismo se faz presente. O pai de Marona, um cão arrogante com seu pedigree, é informado sobre a paternidade e claramente foge à responsabilidade, mesmo ainda apaixonado pela mãe; isso marca a protagonista, mesmo que ela preserve características dele como mostrado posteriormente. Além disso, constantemente a heroína tem seu gênero trocado, inclusive por seu primeiro dono, que ainda depois da descoberta de sua feminilidade, continua a tratá-la por pronomes masculinos. Essa observação quanto ao seu gênero não é uma mera jocosidade do roteiro, dadas todas as referências jogadas na direção do tema.
Junto a esse debate, A Fantástica Viagem de Marona inclui muitos outros, menos específicos, como a rejeição constante que a vida impõe aos seres viventes, a necessidade ou não de carregar suas experiências junto consigo em direção às próximas, aprofundando novas relações antes mesmo da intimidade, e a masculinidade tóxica, em diversas esferas, classes sociais e faixas etárias. Com sua textura surrealista, à primeira vista não esperaríamos discussões tão concretas em cena, mas Anca avança por sobre suas cores expressivas com um olhar naturalista sobre a existência humana e a cortina de fumaça diária que os seres criam para impedir conclusões a questões básicas do trato social e da quebra das expectativas em relação ao próxima, uma lição que Marona aprende muito mais rápido que seu donos.
A cada nova passagem da personagem por uma nova identidade, também o longa pareça alterar (ainda que ligeiramente) o estilo gráfico da sua animação. Inicialmente Marona é adotada por um artista de rua com inclinações circenses e o filme adquire formas que se desdobram infinitamente, assimilando a alma artística do personagem como algo mutante. Na segunda passagem, a cachorrinha passa a viver com um trabalhador de construção braçal, fazendo com que a produção ganhe ares de um videogame antiquado, com suas formas concretas e encerradas, sem amplitude de traços. Por fim, a personagem acaba por habitar uma casa com uma família em conflito, onde uma mãe provém a todos, por isso seus cabelos parecem não ter fim e inundam todos os espaços, como a se dedicar sobre todas as coisas.
Como se trata de uma produção europeia, os contornos, paleta, atmosfera e narrativa de A Fantástica Viagem de Marona passam longe do convencional, e isso é um dos grandes predicados do trabalho. Mesmo quando produzido por diferentes estúdios, com diferentes propostas técnicas, as animações americanas parecem seguir um padrão aceitável para que seu visual desagrade a menor parte do público possível. Aqui, o risco é assumido e abraçado, enquanto tenta encontrar uma saída poética para o que filmes repletos de clichês como Quatro Vidas de um Cachorro acabam assolando na tela. Aqui, Marona entende o sentido da sua vida, da sua passagem pela existência, das lições aprendidas com todos que conheceu e que carregará consigo, transformando as próximas experiẽncias e sendo alguém melhor com cada aprendizado. Quantos humanos conseguem essa compreensão?
Um grande momento
“Eu não tenho uma casa, eu apenas moro lá”