Crítica | Streaming e VoDFestival de Berlim

O Bar Luva Dourada

Fatih Akin como nunca se viu

‘”Eu sou um garoto hamburguês” declarou Faith Akin em um dos programas de entrevista mais conceituados da TV aberta alemã. O programa já não existe mais, porém, o amor pela cidade costeira do norte da Alemanha, seu dialeto, sua forma de perceber a vida e lidar com ela, permaneceram na retina do cineasta mais instigante da contemporaneidade. Em artigo antes da Berlinale eu afirmava isto e continua valendo. Ao contrário dos berlinenses, afogados, estressados, os hanseáticos são calmos, gentis, distanciados e avessos a cenas espalhafatosas. A diferença de distância entre Berlim e Hamburgo é de 300 Km, mas a diferença de mentalidade, estilo de vida, retórica e tudo mais, é gigante.

“A luva dourada” é o nome de um dos bares que fazem parte do cenário que resiste ao galopante processo de urbanidade das grandes cidades e em Hamburgo, não poderia ser diferente. Para Akin, a possibilidade de exibir seus personagens, como um recorte da sociedade lá fora, foi encontrada no bestseller homônimo de Heinz Strunk.

O espaço apertado intensifica a presença dos personagens que não poderiam ser mais antagônicos, mas algo os une: o bar como um refúgio, proteção, vitrine. Nesse filme, diferente de tudo que fez anteriormente, Akin joga com todas as cartas e mostra que bandeira pouca é bobagem. Ele diz se apoiar no livro escrito por Strunk, no qual o filme é baseado, e disse ter se mantido “fiel ao máximo” ao alicerce literário, porém o seu approach dramatúrgico não é pra quem tem nervos de manteiga e ainda muito menos para aqueles, se achando, haviam colocado o perfil de Akin numa moldura. Ele sai dali galante, ousado, livre, leve, solto.

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Abismo Humano

A influência fassbinderiana no fetiche pelo abismo do ser humano e pelo prazer em esfregar na cara do espectador até que ele tenha que sair da sala para se recompor, nem que seja para jogar água no rosto, vê-se na no filme do romance de Strunk.

Durante a projeção se estabelece um ritual de colocar as mãos no rosto como uma viseira para se poupar de ver cenas explícitas do serial killer decapitando suas vítimas com o barulho do cerrote no pescoço, ou cenas explícitas de sexo ao utilizar como utensílio, o alimento preferido dos alemães, a salsicha: geladinha, fresquinha da geladeira. Cenas que fazem a mamadeira de piroca parecer café pequeno até pros cristãos fundamentalistas dos Crivellas e Bolsonaros.

Divulgação | © 2018 WarnerBros.Ent.

Asco

O banheiro do Berlinale Palast se tornou, naquela note da estreia, um refúgio do asco e de quem havia sido servido de bandeja com o lado mais podre do ser humano contra as mulheres. A solidariedade das mulheres que ali entravam se dava no olhar, que procurava um amparo feminino: “Ekelhaft” (nojento), disse uma na lata pra mim e completou: “Meu marido esta lá dentro, mas eu não consigo ver isso”, frase que nada me tranquilizou, pelo contrário, colocou uma luz turva sobre o relacionamento dela, instigando a questões como que tipo de marido é esse que deixa a mulher ficar esperando sozinha no saguão para ver um sádico que decapita mulheres? Oi?

Eu não sei o que aconteceu com o Akin” e ainda mencionou que conhecia o autor, Strunk: “Eu sou de Hamburgo. Ele vivia lá no meu bar. Um cara pedante, de correntinha de ouro. Ihhh“, arrematou ela.

No dia seguinte, choveram críticas ao diretor. Até uma hashtag foi criada pelo Twitter. Um dos mais importantes críticos de cultura na Alemanha foi imperdoável em sua conta: “Fatih Akin se tornou um zero a esquerda”.

Divulgação | © Gordon Timpen

Toda a nudez

Um recorte dos moradores do bairro se vê dentro da espelunca, sua solidão, seu conformismo, seu abandono e, acima de tudo, sua carência, sendo que a das mulheres é mais exacerbada devido a sua aparência de total abandono, sublinhada por cabelos oleosos, mal cortados, pele destruída, um olhar sofrido e carente de todo o tipo de coisa. Tá tudo ali dentro daquele botequim!

Não é nenhum acaso que o filme de Akin tenha esse lugar como plot central, a principal linha de argumento. “As cenas no bar eram para os espectadores respirar e, frente a tantas outras cenas explícitas de violências” declarou o diretor num programa da TV alemã.

O assassino Fritz “Fiete” Honka foi descoberto por acaso, quando houve um incêndio no prédio onde morava e, durante os trabalhos de apagar o fogo, descobriram-se restos mortais de 3 mulheres (foram, ao todo, quatro que ele assassinou e esquartejou entre 1970 e 1975). Depois de cumprir 15 anos de prisão, pena máxima na Alemanha, ele ficou enclausurado numa clínica psiquiátrica já que, por debilidade mental, não seria responsável pelos seus atos, assim prescrevia a sentença. Em 1993 Honka foi liberado do hospital psiquiátrico e passou o resto de sua vida numa abrigo de idosos , vindo a falecer em 1998. O caráter cult que o filme já tomou, tanto pelos que o odeiam quanto pelos que amam, será um desdobramento bem-vindo para o atual dono do bar “A luva dourada”, que pode estar certo de inúmeros visitantes de todas as partes do mundo. Mesmo que ao fechar deste texto não haja, nem no Brasil e nem em Portugal, um contrato de distribuição do filme.

Divulgação | © Boris Laewen

Similaridades

As heroínas de Fassbinder eram mulheres à procura da felicidade e ele as emoldurava nessa tarefa de Hércules de ser feliz. O Casamento de Maria Braun talvez seja o mais sintomático quanto à obsessão do diretor que viveu somente 37 anos e incluía sua mãe em seus filmes para ficar mais tempo perto dela.

O mais novo trabalho de Akin passa dos limites do justificável, exige a quebra de muitos paradigmas daquilo que se pode ou não mostrar num filme além do abismo humano que ele faz questão de explorar e, com isso se aproxima muito de Fassbinder. “Com esse filme eu quis horrorizar os homens, fazer-los refletir” e Akin declara isso com gélida postura, sem medo de ser feliz, no caso, sem medo dos críticos, itens que ele também divide com Fassbinder que, desde o início de sua carreira, se lixava para a mídia. Ao apresentar seu primeiro filme no festival de Hamburgo 1969, durante a coletiva, ele ficou o tempo todo de olhos fechados enquanto os jornalistas tentavam enviar suas perguntas. Depois de um tempo, do nada, ele, com sua jaqueta de couro habitual, disse: “Eu tenho que ir embora. Já está começando o Sportschau“, um programa esportivo com o resumo dos jogos de futebol acontecidos naquele dia.

O diretor Fatih Akin em auto-retrato

A Emancipação

Com esse filme, Akin faz uma declaração de amor a cidade em que nasceu, mas também proclama sua emancipação frente a diretores “alemães” com sobrenomes alemães e espectadores que aguardam dele algum filme sempre ligado à politica da Turquia, que já o haviam rotulado para sempre, ou aqueles que sempre esperam um filme sobre uma temática de imigrantes ou fronteiras como “Em Julho”, um road movie pelos países do Leste Europeu, suas idiossincrasias e sua babilônias, com Moritz Bleibtreu e Christiane Paul nos papeis principais.

Era chegada hora de se emancipar e fazer um filme sediado em Hamburgo, com um protagonista loira de arrepiar e a deixar fazer cenas dentro de um açougue frente à um monte de tipo de carne vermelha, imagens que poderiam ser de um filme pornô. Desnudar mulheres entre 40 e 60 e que, por uma noite, por um momento em lugar aquecido e com a esperança de um pouco de ternura, abdicam de qualquer percentual de dignidade e vontade própria, exibem imensa coragem e vontade de quebrar parâmetros. As pelancas, os seios caídos, as práticas sexuais longe de qualquer prazer instigam o nojo e o asco. O filme não acaba quando a sessão termina. Ele fica girando na cabeça durante dias e quanto mais se reflete sobre ele, já fora do bombardeio de cenas violentíssimas, dinâmica uber intensa, mais se constata uma obra senão prima, única no cinema alemão recente e alinhavada de muita ousadia. É difícil constatar, da perspectiva de hoje, se esse filme será um divisor de águas na filmografia do diretor hamburguês. Os indícios para que isso aconteça, são muitos. O filme foi liberado para maiores de 18 anos e estreou nos cinemas alemães no dia 22 de fevereiro.

O trailer, com legendas em inglês já está disponível

Jonas Dassler/Honka

Foi Jonas Dassler, um jovem ator (23) que foi descoberto pelo diretor Lars Kraume no filme A sala de aula silenciosa (Das schweigende Klassenzimmer), que foi exibido em 2018 na Mostra Competitiva da Berlinale (o Cenas reportou), quem deu vida ao serial killer. Em entrevista, Jonas conta que a preparação da maquiagem durava entre duas e duas horas e meia e que à noite não sobrava muito tempo pra nada.

A metamorfose de Jonas para Honka beira o aterrorizante. Os óculos fundo de garrafa, o cabelo todo gorduroso e a franja escorregando na testa, os dentes quebrados, juntados a um sorriso perverso e olhos clamando por atenção, ternura, tesão e amor ou qualquer tipo de empatia. E como ele não consegue sair da fantasia da loira fatal que encontra no bar e que preenche todos os estereótipos da alemã fatal desta vez, devorando carne. Como nota que não tem nenhuma chance com ela, vai vingar sua baixa autoestima e suas paranoias em outras mulheres, para a “sobra”; mulheres prostitutas, solitárias e/ou sem teto, com problemas de alcoolismo e que aceitam qualquer manifestação de empatia. Topam tudo por crônica falta de escolha e por visível abandono.

Divulgação | © Gordon Timpen

Ironia

Ratificando a minha tese que essa obra de Akin tem caráter emancipatório para o turco hamburguês, que quis mostrar que o privilégio de incluir na trilha sonora, verdadeiros sucessos evergreens da parada de sucesso alemã, não é somente para seus colegas com sobrenome Petzold, Schmidt, Tykwer ou Dresen. A trilha sonora é, um dos maiores highlights do filme. Em doses exatas, Akin escolhe musicas para ratificar a melancolia, a solidão assim como a vontade de quebrar as vidraças de quem te olha atravessado.

Na coletiva de imprensa durante a Berlinale, perguntado sobre como foi o processo de autorização para usar as músicas na trilha do filme, ele confessou que alguns autores não queriam ver seus sucessos envolvidos com a temática de um filme que aborda as perversidade de um serial killer. Akin fala isso com a naturalidade de quem chegou lá, mas também com a maturidade na hora de lidar com um não. Um tom bem diferente daquele que ganhou visibilidade internacional na Berlinale de 2004 dirigindo Contra a Parede (Gegen die Wand) e levando o Urso de Ouro. Dali, ele já deixou de fazer parte do miolo e passou a fazer parte do creme de lá creme dos diretores da Alemanha. A Luva Dourada foi o golpe de mestre, a cereja do bolo, emancipação total e definitiva.

Divulgação | © Gordon Timpen

A última canção, no momento dos créditos finais, não poderia ser melhor: “Nós somos jovens e livres”(Wir sind jung und frei). A positividade despretensiosa dessa música faz esquecer, por alguns minutos a indigeribilidade deste filme e isso o torna uma obra que precisa ser vista por tratar de um tema tão forte e tão difícil sem cair no patético, no piegas, uma qualidade que Akin domina. E o melhor de tudo: ele se recusa, terminantemente e durante todo o filme, em se deixar seduzir pelo politicamente correto.

A riqueza dos diálogos permite aflorar a diferença de gerações dos perdidos e desgarrados que ali se encontram. Espaço ausente de hierarquias e que ameniza um pouco a solidão de cada um que ali entra.

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Fátima Lacerda

Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim e cobre o festival desde 1998. Formada em Letras no R.J e Gestão cultural na Universidade "Hanns Eisler", em Berlim é atuante nas áreas de Jornalismo além de curadora de mostras. Twitter: @FatimaRioBerlin | @CinemaBerlin
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