Crítica | Festival

A Melhor Mãe do Mundo

Risco calculado

(A Melhor Mãe do Mundo , BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Anna Muylaert
  • Roteiro: Anna Muylaert
  • Elenco: Shirley Cruz, Seu Jorge, Rihanna Barbosa, Benin Ayo, Luedj Luna, Renan Santos, Rejane Faria, Lourenço Mutarelli
  • Duração: 105 minutos

Mulheres cineastas costumam não perder tempo em montar uma filmografia que corresponda ao que se espera delas, estejam elas se revelando ou tentando criar uma marca particular. Não apenas criatividade, mas a ousadia que é apresentada não é precificada por um mercado que precisa entender autorias e promover marcas. Anna Muylaert, por exemplo, é uma diretora que nunca vetou a coragem de seu vocabulário, para o bem e para o mal. Desde sua formação como curta metragista, em títulos como A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti, até desabrochar em sua estreia em longa, o desconcertante Durval Discos. O que esperar de uma cineasta que surja de maneira tão inusitada, e não perca tempo tentando emoldurar sua linguagem? A própria respondeu com sequências de produções inesperadas, sem precisar apelar para alguma originalidade extrema – ela apenas tentava modificar o olhar com o qual tentavam enquadrá-la. 

Com a exibição de A Melhor Mãe do Mundo na abertura do Cine PE 2025 (após o sucesso no Festival de Berlim deste ano), Muylaert volta para o espectador que a imaginava tê-la perdido ano passado, após O Clube das Mulheres de Negócios. Ainda que o filme do ano passado também representasse muito bem o símbolo que permeia a bravura de uma cineasta, o resultado de tantas incertezas não mostrou um resultado equilibrado. Agora, por mais que já tenha passado pelo drama de festival europeu a algum pouco tempo em Que Horas Ela Volta?, o que ela revela aqui não é uma recriação daquela cineasta, naquele registro específico. Ainda que torne a conversar sobre maternidade a partir do um olhar para pessoas de classe econômica baixa, existe uma crueza aqui que sempre ameaça escapar da direção, revelando sempre os esforços do coletivo em tentar realçar o horror em cena com um rasgo de delicadeza. 

Essa ausência de medo de Muylaert faz com que seu recorte do momento esteja em um cinema que experimente de muitas formas, tanto pelas vias naturais, quanto por algo de barraco que escapa dentro de uma ideia de esforço e alguma luta por prosperidade. A Melhor Mãe do Mundo não depende desse dispositivo hiper realista para ganhar uma discussão; se ele pode ser utilizado, não significa que qualquer outro tipo de cinema será abolido em si. Nasce então uma criatura de natureza híbrida, que se presta a filmar com exatidão uma série de situações, e em outras colocações precisa chutar alguma lógica estética, e os personagens são desenhados com tamanha qualidade, que tudo é facilmente absorvido pelo público.

Ainda que escorregue na reta final, isso acontece porque A Melhor Mãe do Mundo vai além na sua coragem estética, a ponto de propor uma dose de realidade que nos faz recordar que podemos estar diante de ficção, mas a vida comum ainda será implacável. Muylaert olha para o resultado do que é proposto e decide não premiar com qualquer recompensa rápida, porque a fantasia é uma camada onde o real fura com facilidade. Isso leva o filme de um lugar da coragem para o do risco, porque não conseguimos aceitar as escolhas (muito verídicas) que Gal toma, e passamos a julgá-la – e ao filme… exatamente como no dia a dia. Mas o problema maior é a desnecessária duração alongada, que permite ao filme vislumbrar além do risco, rumo a um erro representativo. Nada se concretiza nesse sentido, mas é uma ideia que a autora talvez não precisasse bancar. 

Existe um bloco do filme, quando finalmente Seu Jorge ocupa a narrativa, que o filme ameaça se tornar uma produção de gênero. Não é uma opinião vazia; os personagens seguem-se mostrando lados cada vez mais assustadores de suas próprias psiques, deixando a narrativa cada vez mais aguda. Talvez um pouco esgarçada no que tenta promover, mas A Melhor Mãe do Mundo é uma experiência cujo equilíbrio é constantemente testado. Posso entender os motivos pelo qual a montagem não age de maneira mais rasgada no que assistimos; é um mergulho cruel de verdade em uma existência trágica, e que para muitas pessoas é apenas sua realidade sem retoques. Por isso não acredito (nem aprovo) que o filme seja chamado de exploratório ou perfumado, porque nada é gratuito em cena, ainda que a duração carregue o horror para longe demais. 

Não podemos dizer que Muylaert faz tudo sozinha, porque ela tem o auxílio de um elenco de sonho, que tem em seu trio central as peças ideais para que tudo siga em fina sintonia. Shirley Cruz é simplesmente um acontecimento, que nos deixa sem entender se havia a necessidade de uma entrega tão brutal e arrebatadora; em diversos momentos, me peguei pensando no quanto isso pode ter atingido a atriz de uma maneira subjetiva e interiorizada, que poderiam levar anos para confrontar. Ao lado dos pequenos que interpretam seus filhos, Rihanna Barbosa e Benin Ayo (de uma naturalidade e capacidade de improviso espantosas), é estabelecida uma mecânica coletiva cuja catarse transcende a emoção, para adentrar o espanto. 

O ambiente carregado de peso constante não é um problema aqui, porque Gal tenta sempre desvincular dos filhos qualquer sentido de horror que o espectador reconhece com facilidade. Sem transformar-se em um festival de esquetes inocentes, A Melhor Mãe do Mundo é mais um exercício de risco de uma cineasta que, já deu para perceber, não aceita a repetição e a continuidade. Bebendo com fúria em uma solução que sempre surpreenda o espectador, seja pelo excesso de verdade ou pela falta de concessões que crie na conversa com o horror, o filme atira e acerta em alvos bastante difíceis, indo e voltando em ameaças narrativas, que algumas vezes se concretizam e outras não, sempre assombrando quem o assiste ao tornar o molho com o qual é cozido ainda mais substancioso.

Um grande momento
Carregando os filhos de casa

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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