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Que Horas Ela Volta?

(Que Horas Ela Volta?, BRA, 2015)

Drama
Direção: Anna Muylaert
Elenco: Regina Casé, Michel Joelsas, Camila Márdila, Karine Teles, Lourenço Mutarelli, Helena Albergaria, Bete Dorgam, Luis Miranda, Theo Werneck
Roteiro: Anna Muylaert
Duração: 112 min.
Nota: 9 ★★★★★★★★★☆

De uns tempos para cá, o cinema nacional tem demonstrado uma realidade que não era tão comum nas telonas daqui. Mais do que falar sobre as classes altas, filmes como O Som ao Redor e Casa Grande tentam explicitar as relações sociais de cima para baixo, expondo todo o preconceito e a falsa cordialidade que a maioria dos brasileiros faz questão de divulgar por aí. Que Horas Ela Volta?, dirigido por Anna Muylaert, segue o mesmo caminho.

O longa conta a história de Val, uma nordestina que veio para São Paulo há mais de dez anos, deixando para trás a filha pequena. Morando em seu local de trabalho, Val serve a família de Bárbara e Zé Carlos, trabalhando como cozinheira, arrumadeira e babá de Fabinho. Até que sua filha, Jéssica, resolve prestar vestibular na capital paulista e precisa passar uns dias na casa dos patrões da mãe. As diferenças e preconceitos que eram velados até então, escancaram-se. Assim como aquela sensação de inferioridade, cultivada cuidadosamente.

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As diferenças estão claras no todo e nos detalhes, desde o quartinho encravado no subsolo da mansão, até a reação ao perfume da mulher sentido pela patroa enquanto corre na esteira na varanda. No local minúsculo, abandonado ao mofo pelos patrões, é onde se esconde aquela que precisa estar lá para servir, mas que não precisaria existir para mais nada. A relação daquela mulher que diz ter sua empregada como alguém da família, mas que não a deixa esquecer o “seu devido lugar”.

A chegada daquela filha incomoda não só pela invasão do espaço antes respeitado por sua mãe, mas também por sua visão de mundo alheia à situação de subjugação e inferiorização a qual Val sempre esteve submetida.

O que o filme quer passar não é agradável, é incômodo, e Anna Muylarert (É Proibido Fumar) usa a ironia para chegar ao seu objetivo. A construção de Val, com todo seu afeto e simpatia contrasta com a situação de uma mulher que entrou em um círculo de subserviência e tem pouca consciência do que está acontecendo com ela. Val acredita que aquela família a considera como um membro, mesmo sem nunca ter chegado perto disso. Ela ganha as roupas boas que eles não querem mais, a patroa a trata bem e ela vai receber sua filha, tudo para afastar de seus olhos que ela tem que ficar da porta da cozinha pra lá.

A atuação de Regina Casé (Eu, Tu, Eles) é fundamental para que Val torne-se real e possa ser tão facilmente reconhecida. A atriz sabe como mesclar os sentimentos de alegria, carinho, devoção, saudade, vergonha e até frustração que a constituem. É ela quem transforma Val naquela imigrante que veio tentar a vida na cidade grande, sonhando em assim dar condições melhores para sua filha. Sem exageros e de forma muito simples e verdadeira.

O elenco ainda conta com boas atuações da dupla de jovens Camila Márdila (O Outro Lado do Paraíso) e Michel Joelsas (O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias), a filha biológica e o filho dos patrões que é quase um filho de criação. Lourenço Mutarelli (Natimorto) também está bem como o patrão, apesar de parecer mais solto em algumas cenas do que em outras.

Que Horas Ela Volta? abala quem o assiste pela realidade de tudo que se vê, pela constatação de uma relação construída doentiamente sobre as bases escravagistas desse nosso Brasil por tantos anos e que ainda existe, como antes. Abala pela certeza de que esta relação patrão-serviçal é doentia, abusiva e excludente, e por mais que alguns passos tenham sido dados, está longe de chegar a algo respeitoso. Abala porque a classe social conta demais e ainda vai continuar contando por muito tempo, em um país cheio de preconceito e tudo mais que vem de pior com essa ausência de exame crítico e conhecimento, com a falta de respeito e senso de comunidade que invadem o nosso cotidiano.

Um Grande Momento:
“Não me acho melhor, mas também não me acho pior”.

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Links

IMDb [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Dffs46VCJ_g[/youtube]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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