A Onda (Die Welle) é um filme alemão que conta a história de Rainer (Jüergen Vorgel), um professor do ensino médio, famoso por sua rebeldia e seu ar anárquico, que, após perder o prazo para apresentação do projeto de ensino da anarquia, é designado para ensinar os alunos sobre autocracia, o que não o agrada nenhum pouco, mas não há muita escolha.
No primeiro dia de aula, o professor se depara com diversos alunos que formaram sua turma não por interesse na matéria, mas tão-somente para fugir das aulas maçantes ensinadas pelo tedioso professor Dieter Wieland (Hubert Mulzer), então, diante de alunos desinteressados, desfocados, sem conhecimento prévio sobre a matéria e completamente indisciplinados, Rainer os pergunta o que eles pensam de ditaduras e é quando compreende que os alunos têm plena certeza de que o nazismo jamais poderia voltar a vigorar na Alemanha, isso o motiva a ensinar sobre autocracia de forma diferente.
Ao longo de A Onda, percebe-se que a turma se conforma em um grande grupo que se protege e ganha cada vez mais força e mais espaço dentro da escola e da cidade, assim como se forma gradativamente um grupo de fascistas em qualquer Estado, razão pela qual pode-se concluir que o filme busca fazer uma grande crítica social: mesmo você, com ideais anárquicos, gótico, atleta, popular, nerd ou zoeiro, está sujeito a cair na lábia de um governo fascista.
A primeira coisa que se precisa compreender é o que é o fascismo: uma forma de política autocrática, que se exprime por meio do poder absoluto nas mãos de um governante autoritário, que moldará o Estado, criando leis conforme os seus padrões de moral, bons costumes, hierarquia, elitismo e disciplina.
Verificando-se o discurso fascista, de luta contra a corrupção da sociedade, contra a deturpação dos valores tradicionais e morais, contra as crises econômicas e a favor de um mudança radical no status quo, é fácil perceber que a retórica é extremamente populista – visa agradar a toda a população descontente com o governo que esteja no poder – e expressa, de forma radical, o espectro político da extrema direita.
Antes, contudo, de se concluir que qualquer indivíduo de ideais políticos direitistas ou de extrema direita é fascista, é preciso rememorar que existem inúmeras formas de expressão de determinado espectro político: a própria direita, de forma radical, se expressa pelo fascismo, mas também pode se expressar, de forma mais branda, com o liberalismo; lado outro, a esquerda radical se expressa com o stalinismo, mas pode vir de forma mais suave com o socialismo.
Dando sequência, verificamos as consequências do fascismo: um Estado onde um só governante detém absolutamente todos os poderes e ninguém pode reclamar dos ou questionar os seus mandos e desmandos; há um culto ao líder fascista, porque ele é tido como o único capaz de guiar a nação; implementa-se um sistema político unipartidário, de modo que somente o próprio partido fascista detenha o direito de atuação no sistema político nacional – os outros partidos são automaticamente repudiados; desprezam-se valores liberais – que englobam as liberdades individuais e a democracia representativa – e sociais; repudiam-se os métodos políticos tradicionais, ao argumento de que foram eles que levaram o Estado a uma crise; exaltam-se dos valores tradicionais da sociedade, rompendo com tudo que seja considerado “vanguardista”; há chauvinismo – valor extremado ao nacional e repúdio aos estrangeiros, com a aceitação de atos de xenofobia; ideais de hierarquia social – aqueles que seguem o padrão que o fascismo diz ser o “melhor” são considerados sujeitos mais evoluídos, enquanto todos os que deixam de seguir esse padrão, ou não se conformam com o sistema político fascista, são considerados “inferiores” e até perseguidos, porquanto se tornam “inimigos do Estado”.
Surge, portanto, a pergunta de como esse sistema político ascende ao poder. A resposta é simples: como a retórica do fascismo é populista, ele consegue, facilmente, cair nas graças do povo e, de repente, todos aqueles que se viam sem esperança, sem amparo e sem norte para a própria vida se sentem representados por alguém que compartilha dos seus sentimentos de indignação e, rapidamente, passam a segui-lo, dando-lhe cada vez mais força e, por fim, elegendo-o ao poder.
A Onda demonstra bem o passo-a-passo da conformação de um Estado fascista:
1) Indignação popular: um conjunto de pessoas, a maioria de uma nação, está repleta de insatisfações. Cada indivíduo com sua insatisfação pessoal. Em A Onda, verificamos jovens que buscam, desesperadamente, pela aprovação de seus pais, professores, parentes e amigos, que são contra seguir as regras impostas, tanto pela escola, quanto pela sociedade.
2) Organização dos inconformados: as pessoas indignadas com o atual cenário passam a trocar informações e exprimir suas indignações abertamente. Nos primeiros dias de aula, em A Onda, os jovens que pareciam não ter nada em comum, começam a perceber que compartilham a vontade de romper com o sistema, subvertendo-o, e deixando de serem considerados “mal tratados” – apesar de alguns deles, claramente, serem mais privilegiados que os demais.
3) O Reich: diante de um grupo organizado que luta contra o sistema, alguém surge com soluções práticas e populistas, caindo nas graças do grupo e sendo visto como um verdadeiro herói. No longa, o professor Rainer aparece como a figura que salva os jovens, à medida em que reconhece seus pontos positivos, incentiva-os a serem cada vez mais produtivos e criativos, lhes dá voz e força na luta contra o sistema, encabeça a criação, nomenclatura e criação de arte visual, para dar mais visibilidade ao grupo, dizendo que são válidas as suas reclamações e fazendo-os se sentirem amparados.
4) A ascensão do Reich e o amor pela causa: após o grupo organizado conseguir formar a maioria popular, facilmente eles conseguem fazer o seu líder supremo ascender ao poder, o que pode ocorrer tanto por um golpe, quanto de forma democrática, por meio de eleições. A seguir, uma vez garantido o poder ao Reich, torna-se cada vez mais fácil que ele garanta mais direitos àqueles que participem da comunidade fascista e viole os direitos dos demais, fazendo, consequentemente, com que os fascistas se sintam ainda mais representados e dispostos a matar e morrer pela manutenção do Estado fascista, que lhes é tão bom, porque lhes assegura tantos direitos.
Em A Onda, a eleição do professor como o líder supremo do grupo é feita de forma democrática, quando os jovens, majoritariamente, dizem que Rainer deverá encabeçar o grupo e, uma vez criado o grupo e assegurada a participação de todos os jovens no mesmo, eles não pensam duas vezes antes de praticar atos de vandalismo e violência para difundir a existência do grupo e garantir que ninguém se volte contra o mesmo.
Fazendo, agora, um paralelo com a nossa sociedade, fica evidente o porquê do atual debate acerca do fascismo, e mais, o porquê do medo de um sistema fascista ascender ao poder no Brasil.
Indignação social: na nossa sociedade, vemos pessoas insatisfeitas com a velha política de compra de cargos para conseguir aprovações de leis e inúmeros casos de corrupção; com a crise econômica que assola a sociedade, a qual é atribuída à velha política; com a ruptura e deturpação dos valores tradicionais de igreja, sociedade e família, na medida em que se asseguram cada vez mais direitos aos negros, comunidade LGBTQ, pobres, mulheres e todas as minorias.
Organização de inconformados: as pessoas indignadas com o antigo cenário político, que garantiu tantos direitos às minorias, mas parece não ter se preocupado com a economia, passam a trocar informações e exprimir suas indignações abertamente, fazendo manifestações de cunho extremamente inconstitucional, pedindo a volta do regime militar e do ato institucional 5, porque sabem que, no cenário político de ditadura, pouquíssimos serão os direitos garantidos às minorias e, dessa forma, essas pessoas conservadoras não precisarão dividir espaço com minorias.
O Reich: se na Alemanha nazista havia a figura de Hitler e na Itália a de Mussolini, certamente pode-se dizer que, no Brasil, já há uma figura que sequer precisa ser nomeada – até porque ele faz apologia aos dois primeiros o tempo inteiro – e é conivente com todas as manifestações antidemocráticas, dando aos tradicionalistas o sentimento de pertencimento a um grupo maior, de representatividade de seus ideais, de impunidade por tudo que façam em prol da luta pelos direitos tradicionais, ainda que os seus atos sejam ilegais, inconstitucionais e antidemocráticos – até porque fascistas não se importam com leis, a constituição ou a democracia, uma vez que sabem que, quando ascenderem ao poder e tiverem a oportunidade adequada, cometerão um golpe que acabará com tudo o que se conhece de leis e normas constitucionais, para conformar um novo ordenamento jurídico.
Amor à causa: uma vez consumada a eleição do líder fascista, que sempre foi explicitamente fascista e nunca deixou de evidenciar seus ideais em prol da hierarquia, do elitismo e do autoritarismo, já que sempre defendeu abertamente a tortura; a perseguição dos “inimigos do Estado”; o fuzilamento de quem agisse contrariamente aos seus ideais; o fim de direitos e garantias constitucionais assegurados às minorias; o amor extremado ao nacionalismo – esse aqui, temos que reconhecer, tem deixado a desejar -, dentre outros ideais fascistas, faz com que os grupos de conservadores indignados com os governos antigos se sintam ainda mais representados, de modo que suas ações são legitimadas pelo discurso de ódio do próprio líder supremo, que agora exerce um cargo político importantíssimo.
A grande questão é que, se no filme a dificuldade de o grupo A Onda se manter proveio das críticas externas e da própria moral do líder do grupo, no Brasil, a dificuldade de se conformar o fascismo encontra-se na oposição, que busca lutar contra as arbitrariedades de qualquer líder fascista, e na Constituição Federal, que veda expressamente qualquer forma de investida contra o Estado Democrático, além de prever expressamente a manutenção dos três Poderes.
Neste sentido, para que um fascista consiga, de fato, implantar o fascismo no Brasil, ele precisa ou dar um golpe de Estado, ou garantir a coalização com o Congresso Nacional que lhe assegure ampla liberdade de atuação contrária às normas constitucionais, a fim de que se criem leis e normas antidemocráticas, autoritárias e inconstitucionais.
Infelizmente, pelo histórico de golpes, de militarização do governo, de Estado antidemocrático, de abusos e autoritarismo, o golpe não é inimaginável e, de igual modo, apesar de os deputados e senadores integrantes do Congresso Nacional terem sido eleitos democraticamente para lutar em prol dos direitos do povo, não é impossível imaginar um cenário em que façam coalizão com um fascista para que consigam mais direitos e favores políticos, ainda que isso signifique o fim da Democracia.
(Die Welle, ALE/FRA, 2008, 107 min.)
Drama | Direção: Dennis Gansel | Roteiro: Dennis Gansel, Peter Thorwarth
Elenco: Jürgen Vogel, Frederick Lau, Max Riemelt, Jennifer Ulrich, Christiane Paul, Jacob Matschenz, Cristina do Rego, Elyas M’Barek, Maximilian Vollmar, Max Mauff, Ferdinand Schmidt-Modrow, Tim Oliver Schultz
Assistir ao filme “A Onda” no Telecine
Na lista “Filmes para ter vergonha de se dizer fascista“
A Onda