(Une femme facile, FRA, 2019)
Muito do cinema está nesse olhar erotizado para a mulher. Demorou algum tempo para começar a se desvencilhar disso, para a abandonar a objetificação desse olhar. Ponto importante para a virada, a conscientização da mulher e uma maior representatividade da produção cinematográfica, transmutação do retratar o corpo da mulher, mas tradições são sempre tradições, e elas podem estar tão arraigadas dentro de você, que nem se notam. A busca por um cinema considerado clássico pode levar, em pontos específicos, ao retrocesso puro e simples. A Prima Sofia, infelizmente, é um exemplo desse olhar para o passado e representações ultrapassadas, que levam à armadilha da mulher como objeto, do corpo como produto para o deleite do espectador.
Dirigido pela francesa Rebecca Zlotowski, o longa-metragem é contraditório. As primeiras cenas remetem justamente à escola francesa, no destaque aos atributos físicos da prima, em uma câmera que passeia ou se demora com desejo naquele corpo, erotizando-o. Elas contrariam a mensagem que o filme parece querer passar. Embora encontre muito interesse na construção da personagem Naïma, nessa indefinição da personalidade e do futuro com a chegada da vida adulta, quando se volta para Sofia como uma das influências da jovem. Além da objetificação, o filme julga este exemplo de vida desde o princípio, no título original Une femme facile (a mulher fácil), expressão francesa para definir uma prostituta, até o desfecho de sua história dentro da trama.
Tudo se baseia em uma pretensa liberdade que a faz chegar e partir sem aviso, que a fez ir a Paris deixando Cannes para trás, ou no modo como estabelece suas relações, desde uma tatuagem no final das costas, mostrada num movimento de câmera constrangedor, até a literalidade de uma conversa hedonista onde deixa claro que o amor não importa, mas sim o momento, a sensação. A escolha da ex-prostituta argelina Zahia Dehar – que ficou conhecida pelo escândalo de pedofilia por jogadores de futebol franceses e hoje é considerada um dos símbolos de libertação feminina – para o papel está nesse mesmo lugar. Mais do que óbvio é quase ultrajante.
Não há muito como enxergar A Prima Sofia para além destas determinações nocivas. É possível, sim, perceber qualidades, em algumas construções cênicas como, por exemplo, quando contrapõe homens e meninos na praia, com o iate que ancora em um lado da tela e jovens que descem no lado oposto tendo as duas protagonistas no centro de ambos, mas é, literalmente, uma cena perdida entre o voyeurismo e o pretenso empoderamento de uma mulher que usa o corpo como quer (“depilei hoje”). Os diálogos aqui e em outros momentos são incômodos e rasos, assim como a própria atuação de Dehar.
Sobra então Naïma, vivida por Mina Farid e construída com alguma eficiência no roteiro da própria diretora e de Teddy Lussi-Modeste. A indefinição do futuro, as tentativas de se encontrar, a personalidade fluida que se encontra nas projeções de terceiros, a busca pela própria sexualidade, tudo isso, somado à atuação segura e entregue da atriz, é muito interessante. E seria a premissa de um filme muito interessante se houvesse mais equilíbrio no que mostra, indica e determina. É possível pensar que há um objetivo por trás de tudo aquilo que se enxerga, imaginar que é um olhar perdido entre admiração, desejo e julgamento de uma das personagens, mas não há o que justifique a forma.
No final das contas, é um filme que se quer progressista mas é retrógrado. Ali, perdido no desejo visual da própria realizadora, alcança um passado contra o qual se luta diariamente. Se nos dias de hoje há uma busca constante para se livrar daquilo que está dentro de cada um e de cada uma, para recriar o olhar cinematográfico e uma cinefilia desvencilhada do corpo feminino como objeto de interesse, A Prima Sofia é um desserviço a todo o avanço já conseguido. Uma pena, porque poderia ter sido um grande filme sobre construção de personalidade.
Um grande momento
Acordando com a mãe.