Crítica | Festival

A Rainha Diaba

Brilho de uma demônia que atravessa o tempo

(A Rainha Diaba , BRA, 1973)
Nota  
  • Gênero: Drama, Policial
  • Direção: Antônio Carlos da Fontoura
  • Roteiro: Plínio Marcos, Antônio Carlos da Fontoura
  • Elenco: Milton Gonçalves, Nelson Xavier, Stepan Nercessian, Odete Lara, Yara Côrtes, Edgar Gurgel Aranha, Wilson Grey, Lutero Luiz, Zezé Motta
  • Duração: 100 minutos

Assistir a A Rainha Diaba em 2023 é uma experiência completamente diferente da visão do primeiro público, há 50 anos. Mesmo em 2000, teríamos um outro olhar para o filme de Antônio Carlos da Fontoura, visto que hoje os signos, códigos e criaturas moradoras daquele universo particular atingem uma comunicação com o agora de maneira impressionante. A cópia digitalizada (os responsáveis não usam a expressão ‘restauração’ ao processo) que está pronta há quase um ano não realçou apenas o estado de conservação do material – que já era de muito bom estado, diz-se – mas principalmente transforma as discussões em torno de um material que só se potencializou positivamente. 

Corpos negros destoantes, com verdades particulares ao que o mundo impôs a eles, estão se normatizando nesse exato momento, quando vemos protagonismo nas novelas, quando filmes produzidos com elenco 100% preto chegam aos lugares, ganham prêmios, disputam bonecos dourados e são sucesso de bilheteria no Brasil. Mas os caminhos desviantes que percorre a personagem-título aqui, ainda hoje tenta encontrar eco na produção audiovisual. A Rainha Diaba, enfim e quem diria, é mais moderno do que grande parte do que é realizado em 2023, mesmo tendo sido feito – sabe-se lá como, e com quantos anjos da guarda – em plena ditadura, período onde 50% desse material seria responsável por perseguições inimagináveis; estamos aqui, 50 anos depois e nenhuma censura sofrida. 

Que as cores vivas da abertura, dos cenários, do figurino e da maquiagem de A Rainha Diaba foram trazidas de volta à vida, isso é observado com clareza pela restauração. O que no entanto contrasta com essa explosão de vitalidade é a cor natural que não está apenas em Milton Gonçalves, Nelson Xavier, Lutero Luiz e Zezé Motta, mas na tonalidade empregada em cada personagem que são a síntese da marginalidade, em todos os seus múltiplos sentidos. Fontoura encontrou em Plínio Marcos, o responsável por Dois Perdidos Numa Noite Suja, a figura capital para traduzir toda a transgressão que a contracultura trazia, em sua mais radical vertente. Está na pele dos atores, mas está igualmente no corpo de cada um deles, na forma como eles se movimentam, em como se relacionam entre si e com a câmera, está na liturgia desses elementos. 

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Não há como categorizar tamanha disposição no mesmo lugar que o material físico, embora ambos exerçam fascínios complementares. Angelo de Aquino, artista plástico que apenas aqui assinou a direção de arte, é um dos responsáveis por unir o que se mostra com quem assiste. A inspiração coletiva está a serviço de nos colocar no olho do furacão do período, quase como se fora uma produção descolada de sua época, porque seus elementos são demasiadamente icônicos. Das capas de disco coladas na parede aos artistas representados ali, nada é assumidamente pontual e combina com as flores de plástico, os espelhos de moldura duvidosa, os figurinos também de Aquino que exaltam tudo que hoje é considerado cafona, e aqui adquirem o status de museu vivo. A fotografia de Julio Medeiros (de Xica da Silva e Memórias do Cárcere) completam o padrão geral, ao corresponder com Fontoura essa parceria onde o movimento contínuo da câmera, pelos espaços e pela ação, além da luz ofuscante de muitas passagens dão a A Rainha Diaba parte significativa de seus predicados.

A Rainha Diaba
Cortesia Olhar de Cinema

Fontoura e Marcos criaram juntos uma narrativa tão bem urdida e compartimentada, com riqueza tal de eventos que não se pavoneiam em torno de uma auto importância, apenas movem a narrativa com fluidez e inteligência, que é complexo encontrar o que está fora de ordem em cena. Cinco décadas depois, A Rainha Diaba não encontra paralelos no ato de peitar códigos, idem na elaboração de algo de aparência simples, mas cuja eficácia se faz presente através dos excessos. São personagens e eventos crescentes em relevância dramática, que se erigem diante do tempo que se revelou benéfico a cada decisão sua. Não que o filme tenha passado despercebido na época e só agora seja abraçado; sua consagração no Festival de Brasília de seu ano, os inúmeros prêmios que ganhou, mostram que a Diaba já impactou na estreia. O que a obra faz hoje é uma dobradura no tempo, redefinindo o significado de uma potência que sempre existiu, e que agora pode enfim ser agrupar novos códigos para o hoje. 

Paralelo à tudo que é estético e narrativo aqui, o elenco que está em cena realiza grande parte dos melhores momentos de suas carreiras – e não estamos falando de quaisquer uns. Nelson Xavier e Stepan Nercessian são complementares em suas funções, e sendo os imensos atores que são, entregam momentos de convicção e mergulho inesperados; o primeiro, um Yago tupiniquim, o segundo, a quintessência do perigo em categorias que a palavra não contempla na totalidade. Odete Lara e Yara Côrtes estão em posições opostas dentro de jogo de predominância masculina, mas ambas conseguem corromper e mostrar avanço diante de ideias de poder que as relegava à segundo plano, no qual elas rompem com força espantosa. Mas, apesar do corpo de baile classe A, todos os olhos estão na direção de Milton Gonçalves, e ele sabe que era um dos maiores momentos de sua inominável carreira; hipnotizante é uma palavra que pode resumir o coletivo de acertos que é ele. Um daqueles casos onde todos os superlativos parecem diminutos perto do que de fato está diante de nós. 

Se sempre foi um filme político por excelência, agora A Rainha Diaba redimensiona essas cores com as quais ousou (e ousa) tangenciar sua fala. Existe um molde mesmo dentro da marginalidade que nosso cinema desenhou, em alguns filmes de fato memoráveis como República dos Assassinos, que aqui magicamente são colocados a um degrau abaixo. Pela disposição com que filma a violência, pelo modo grosseiro com que deflagra um machismo que ainda hoje mata, pelo protagonismo que tais corpos aqui exercem e que ainda hoje são relegados à periferia narrativa, o triunfo do longa é cada vez maior. Exatamente no ponto onde bichas e mulheres trans pretas são assassinadas diariamente e nenhum alerta ou controle decente é feito disso, o olhar e a função de Diaba é ainda maior; nunca houve e ainda está longe de ser reproduzida outra igual. 

Um grande momento
O retorno de Diaba

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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