Crítica | Festival

Baile Soul

Reverberando o groove

(Baile Soul, BRA, 20233)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Cavi Borges
  • Roteiro: Cavi Borges
  • Duração: 80 minutos

Seguindo o padrão de momentos propositalmente esquecidos e apagados da história, uma manifestação cultural que tomou conta dos subúrbios do Rio de Janeiro do fim dos anos 1960 até o fim dos anos 1970, por ser a semente de um movimento de afirmação e pertencimento, ficou ali perdida no tempo. Era época de ditadura militar no Brasil, a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos ainda estava ecoando, o movimento black power ganhava força e a música soul dominava muitos espaços. Várias festas comandadas por equipes de som especializadas em black music se multiplicavam em clubes do Rio. Nelas a juventude negra carioca se encontrava para dançar, conversar e reafirmar sua negritude.

Baile Soul, filme de Cavi Borges, faz um resgate do movimento, relembrando figuras marcantes e juntando testemunhos daqueles que foram importantes em sua consolidação. Caso de Big Boy, lendário DJ que garimpava o que de mais moderno havia na música pop, incluindo aí a soul music, para levar ao seu programa de rádio, e depois ao Baile da Pesada que comandou no Canecão e às festas itinerantes; Mr. Funky Santos, que juntou as festinhas hi-fi e o Baile da Pesada, focando apenas no soul e difundiu o formato; e Dom Filó, produtor musical e DJ que levou a cultura black para além da música aos encontros, com sessões de cinema e atividades coletivas; além de outros. No centro de tudo, está evidente a relevância das festas para o movimento, para a noção de comunidade e pertencimento.

O diretor ressalta sua intenção ao abrir o filme com uma das falas do personagem de Antônio Pitanga em Jardim de Guerra, de Neville D’Almeida: “O quê? Não tem racismo no Brasil? O racismo aqui está sob uma capa de paternalismo populista bem português”. Ao escutar DJs, dançarinos, integrantes de equipes,  pesquisadores, ativistas, o longa demonstra o quanto a questão racial influenciou para a criação e fortalecimento do movimento e o quanto foi determinante para que ele fosse também perseguido e diminuído antes da tentativa de apagamento.

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Há aspectos interessantes de debate que são levantados, como a manifestação não como uma marca de imperialismo, mas de internacionalização do movimento black power; a disseminação orgânica tanto regional quanto nacional; ou a identificação dos bailes black como a origem de um novo estilo musical com contornos e expressões próprias. A relação ditadura e racismo, ainda pouco tratada no cinema, também está aqui em vários momentos, inclusive expondo sua permanência explícita, numa demonstração óbvia de racismo. 

É, sem dúvida, um material rico, cheio de nuances e Cavi, a seu jeito, consegue alcançar isso muito bem, trazendo também o evento e a música. É um filme que não nega sua autoria. Com boas inserções e transições aqui e ali, o diretor trabalha com aquilo que tem e usa de muitas imagens repetidas e de origens das mais variadas e improváveis, mas fica devendo outras. 

Há ausências incômodas. Por exemplo, o dançarino Bala Machine nos apresenta PC Capoeira e diz que a melhor história de seu mestre é a de Lurdinha, a primeira soul sister a ser aceita numa roda de homens. A diferença entre o material coletado, se de depoimento, se de resgate de arquivos, também causa um ruído na montagem que, embora tente seguir uma linha cronológica, sofre com alguns cortes bruscos e pequenos retornos nem sempre necessários.

Mas, mesmo entre os desencontros que vão além da personalidade de autoria do cinema de Cavi, Baile Soul é um documento importante, com muitas informações, percepções e, mais, sentimentos sobre o que foi um dos mais importantes movimentos negros no Brasil na época da repressão militar e do qual se fala tão pouco, embora suas consequências estejam em outros filmes – nem só de Rio viveram as festas black – e sua influência se veja/ouça em tantos clubes, rádios e TVs por aí. 

Um grande momento
Jailson sentindo o groove de Get Up (I Feel Like Being a) Sex Machine

[18ª Mostra de Cinema de Ouro Preto]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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