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A Última Floresta

Uma aventura sensorial na origem dos yanomami

(A Última Floresta, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Luiz Bolognesi
  • Roteiro: Luiz Bolognesi, Davi Kopenawa
  • Duração: 74 minutos

“Eu, um yanomami, dou a vocês, os brancos, essa pele de imagem que é minha”

A cosmovisão xamânica de Davi Kopenawa é o tecido repleto de esplendor que é magistralmente manipulado por Luiz Bolognesi na concepção e execução de A Última Floresta, filme documental exibido em Berlim (mostra Panorama), produzido por Lais Bodanzky e que foi o grande vencedor do É Tudo Verdade 2021.

Do diretor de Ex-Pajé, que já havia nesse brilhante documentário anterior proposto um exercício de fé alicerçado numa crítica contundente ao avanço dos neopentecostais inclusive nas aldeias, chega A Última Floresta pegando um caminho outro que vai trilhar por meio do onírico a necessidade de tornar da maior importância a vida dos indígenas brasileiros – em especial os tão aguerridos e combalidos yanomamis.

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A maneira subjetiva de ver e entender o mundo de dentro e de fora torna Davi Kopenawa no melhor e único narrador-protagonista possível nessa saga cosmo ecológica. Epopeia dos anos vindouros, A Última Floresta se desdobra em sequências com uma tessitura de dramaturgia maestra, onde os integrantes da aldeia Watoriki emprestam suas aparências para representar os seres místicos da cosmogonia Yanomami. Kopenawa inclusive foi quem escreveu o roteiro juntamente com Bolognesi, tendo o trabalho de transpor parte de sua poderosa retórica já presente no livro “A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami” (escrito com Bruce Albert) para a narrativa do filme.

A Última Floresta
Divulgação

Incrustada no meio da densidade da florestaa Aldeia Watoriki é um dos últimos repositórios do saber ancestral e onde o pajé e todos os que lá habitam lutam para perpetuar seu modo de viver. Evocando os espíritos da floresta nesse nosso triste trópico do sul para expulsar os garimpeiros das terras – e também, assim podemos mentalizar, Bolsonaro da presidência do Brasil – os yanomamis defendem A Última Floresta, e assim pretendem fazer até seus últimos suspiros nesse reino dos vivos.

Heroi condutor desse libelo cinematográfico é o “perturbador da arrogante surdez dos brancos” nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro, característica que inclusive desemboca em passagens do filmes onde ele aconselha alguns índios mais jovens a não se deixarem seduzir pelos garimpeiros e a promessa de vida outra:

“Os brancos não nos conhecem
Seus olhos nunca nos viram
Seus ouvidos não entendem nossas falas
E mesmo que aprenda a lingua e os costumes, nunca será um deles
Aqui você irá dormir em paz sempre”

Dentre os dilemas, A Última Floresta também traz a inquietação da Índia que é mãe e liderança dentre os yanomami, tecendo a cesta e ciente da importância da associação para fortalecer seu povo e sua atividade artesanal. Ela é que segura o machado que vai machucando um pedaço da madeira do mogno, enquanto a chuva caindo na terra representa ainda seu estado de espírito reflexivo e preocupado com os avanços dos 20 mil garimpeiros que estão pelo território, envenenando os rios, espalhando o coronavírus e simbolizando a maldade encarnada.

A Última Floresta, de Luiz Bolognese
Divulgação

Massacre de nós mesmos

Os yanomami vivem num território no norte do Brasil e ao sul da Venezuela a mais de mil anos. 500 anos se passaram desde que esses dois países existiram e eles já estavam lá, vivendo em suas aldeias. A Watokiri é um desses lugares desde tempos imemoriais e que, com a descoberta de jazidas de ouro em suas proximidades e em outras terras dos yanomami e dos mundurucus, vem sendo manchada com o sangue dos seus viventes. Em 1985, 45 mil garimpeiros lá chegaram e começaram o extermínio em massa que resultou na morte de 1500 a 2000 yanomamis.

Davi Kopenawa reconta em A Última Floresta como, mesmo sendo muito ameaçado, pressiona os governos com apoio da imprensa, especialmente internacional mas o que acaba não impedindo tragédias como o Massacre de Haximu, onde em apenas um dia 16 mulheres, homens e crianças foram assassinados por garimpeiros.

Sentado na rede ele conversa com os mais velhos e com os jovens adultos e mulheres, falando como Omana guardou o minério embaixo da terra para ninguém mexer e a armadilha do garimpo liberta a fumaça da doença. Sentado em uma cama do hotel, ele olha para o horizonte com olhos marejados.

Os adornos, pinturas, a beleza das miçangas coloridas, os sorrisos, as brincadeiras, os chamegos trocados pelo casal de elementos da natureza que ganham carne e osso e se enroscam em chamegos, deitados na rede, tudo e qualquer situação encenada em A Última Floresta traduz o esplendor de uma civilização que resiste, preserva seus ritos e os quer perpetuar ainda por mais gerações, mantendo a ideia de que são indistintos da floresta.

Um sopro de rapé para dentro do corpo e o transe sucata uma conexão com o animal espiritual, cada “parente” do outro plano que eles carregam consigo. O cineasta deixa a conexão com os protagonistas, quase sempre tão retratados como seres exotizados e menos como pessoas, tão intima ainda que no espectro do cinema observacional – o que é um achado. Não são poucos os momentos em que a sensação de que somos parte, um deles, membros da aldeia e seres da floresta, se avoluma.

Com seus crepusculares e azulados céus, matas verdejantes e portentosas, rios caudalosos, amarronzados e que guardam mistérios não-identificados na superficie, guardados na água barrenta, a iconografia sustentada em cada plano de A Última Floresta fortalece a frase que Davi Kopenawa dirige para os mais novos: « Vamos Fazer o que na terra dos brancos? Não devemos ter medo » porque a mercadoria importante é a floresta, os animais, a fertilidade. É nela viver, crescer e dividir alimento com o povo. É seguir existindo como yanomamis.

A fotografia incrível de Pedro J. Márquez é meio difusa, vibrante e certamente influenciada pelo trabalho da fotógrafa Claudia Andujar. A Última Floresta traz uma dimensão mística como constante em sua composição e constituição fílmica o que certamente é uma baita homenagem a Andujar, que desde a década de 70 defende a causa yanomami e os apresenta para o mundo. Amigo dela, Davi Kopenawa inclusive participou, realizando um ritual xamânico e num bate papo com a própria em 2018 na dantesca exposição que o IMS realizou sobre a obra de Andujar, hoje com 90 anos de idade.

A Última Floresta
Divulgação

“Nós não nascemos da barriga na perna”

Filme que tem o Instituto Sócio Ambiental (ISA), entidade que atua e vários estados da Amazônia assegurando a soberania dos povos tradicionais, como produtor associado, cumpre ainda como produto artístico um papel estratégico e político ao se propagar como veículo da luta yanomami para além do fato de ser um documentário poético carregado de urgência e potência advinda do reencarne das lendas de originação e da força silenciosa de Davi Kopenawa e de todos os índios da aldeia Watokiri.

A trilha esplendorosa, que acompanha as sonoridades da floresta é da competência de Talita Del Collado, que cria robustas paisagens sonoras que contribuem enormemente para a sensorialidade de A Última Floresta, com a edição de Ricardo Farias trazendo uma cadência sincopada, que oscila de uma certa agitação aventuresca – desmarcada a partir da cena que anuncia que « no princípio do mundo, só existiam os seres sobrenaturais « – para longos planos que extraem todo o impacto de um transe ritualístico matinal.

“Voces não enxergam a outra margem”

Antropólogo que conviveu com os Pataxós em Porto Seguro, Bolognesi, em entrevista para o jornal ambientalista O Eco, versou sobre como A Última Floresta demarca aquilo que deveria ser considerado por nós, que vivemos nesse território, como da maior importância: “Uma floresta inteira derrubada então é um conceito de riqueza mórbido, que leva à morte, por isso a gente está enfrentando como consequência essa pandemia que está nos mergulhando na morte”.

Ao empreender uma queda do céu, Davi Kopenawa embarca na missão de tentar alertar os estudiosos e formadores de opinião sobre os males em buscar apenas o ouro canibal em detrimento da salvação do planeta. A esperança manifesta em A Última Floresta, que é veículo artístico da pujança da cosmogonia yanomami, se traduz também na possibilidade de que a troca de saberes entre brancos e índios seja horizontal e verdadeira, um escambo intelectual que deveria oportunizar a todos nós, reféns da ignorância a conhecer a biologia, a rica visão cósmica e os anseios daqueles que são parte de nós e donos originários dessa floresta.

Um grande momento
Vários, da ternura na cena que se encerra com a frase “o biju é meu” até o apoteótico discurso em Harvard

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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