Crítica | Streaming e VoD

Noitários de Arrepiar

Entre o faz de conta e o horror

(Nightbooks, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Fantasia, terror
  • Direção: David Yarovesky
  • Roteiro: Mikki Daughtry, Tobias Iaconis
  • Elenco: Winslow Fegley, Jess Brown, Mathieu Bourassa, Krysten Ritter, Lidya Jewett
  • Duração: 103 minutos

Você deve conhecer Sherazade. Ela era a esposa do rei Xariar, um alucinado machista que, após a traição de sua primeira esposa, justificava sua misoginia escolhendo novas parceiras e matando-as no dia seguinte ao casamento. Sherazade conseguiu mudar o seu destino contando toda noite — foram muitas — uma história sobre um tema diferente que intrigava e deixava o seu ouvinte curioso para o próximo dia. Entre elas estão umas bem famosas como Aladdin e Simbad, o Marujo. Mas, espera. Se Noitários de Arrepiar é um filme estadunidense de terror infantojuvenil, porque eu estou falando de contos populares do Oriente Médio? Porque isso tem tudo a ver com o longa de David Yarovesky.

O terror, é um fato, é uma paixão perene. Aqueles que seguem esse caminho, o fazem para sempre, mas ele está muito ligado a essa associação ao fantástico e ao mundo imaginário que esteve muito presente em nossas vidas na infância. Na verdade, o terror e a vivência do terror são a assumpção da transição, o sair do mundo do encantamento e do faz de conta para encontrá-lo em um outro lugar, em um outro formato, com novas figuras e condições. E o filme que está em cartaz na Netflix é uma confusão deliciosa que está bem no meio desse caminho, com uma Sherazade só dele, o jovem Alex, mas que, ao invés de contar histórias para seu rei, tem que ler seus contos de terror para uma bruxa. O castigo é o mesmo da rainha persa: a morte.

Noitários de Arrepiar
© Christos Kalohoridis/Netflix

É um ataque furioso e cheio de frustração do protagonista que o leva até àquela situação e o espectador ao encontro dos dois universos. Ambientando os amantes do horror o vermelho da única janela, o sinistro do apartamento, as referências nas paredes, as sombras e um grito de desespero em close levam Alex ao elevador, ou seria a toca do coelho branco de Alice ou o furacão de Dorothy? No outro mundo, o vermelho ainda gritando na tela de uma TV antiga com o clássico oitentista favorito do garoto — dica fácil e recente dada pelo roteiro –, hipnose e batida de porta bem característica, vão trocando a intensidade e, sem pressa, o tom mais pesado dá lugar à fantasia do conto de bruxas, o “João e Maria” modernoso sem direito a migalha pelo caminho.

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Entenda-se que trocar o tom mais pesado significa dizer que as referências tornam-se menos adultas, como se o diretor parasse aquela brincadeirinha que ele estava fazendo com os pais do seu público, porque o terror continua por um bom tempo, algo que a apresentação da bruxa, Natacha, deixa bem claro. E Noitários de Arrepiar, até ameniza depois de algum tempo, nem sempre fica preso no sombrio e nessa falta de luz, mas não deixa de lado o tom ansioso reforçado pela trilha de Michael Abels e nem os jump scares. Todo o trabalho de arte — desenho de produção incrível de Anastasia Masaro (Tully e O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus) — é muito interessante e cria ambientes para horrores de tipos diferentes, como o viveiro, a sala, o quarto ou a floresta.

Noitários de Arrepiar
© Christos Kalohoridis/Netflix

E vamos agora falar da floresta, onde a Sherazade e aquela biblioteca de a “Bela e a Fera” encontram a Branca de Neve sinistra ou será a Aurora pavorosa num ambiente de sci-fi (?) macabro e o conto de bruxas que levou o filme até ali se concretiza. Hipnose, efeitos alucinógenos, mais referências de quem brinca com as duas elementos não paralelos e curvas e muito vermelho mantém Noitários de Arrepiar entre o mágico e o horrendo e tornando a experiência especial para os mais novos por seu caráter de iniciação num universo que virá se a curiosidade surgir e, ao mesmo tempo, de identificação para os mais velhos, tanto de conhecidas histórias quanto dessa transfiguração do faz de conta, o amadurecimento do universo da fantasia.

O escritor em crise

Ainda que o bullying seja o pano de fundo da história, o que move Noitários de Arrepiar não é exatamente infantil. Embora seja uma criança, apaixonada pelo mundo mágico do horror, Alex é um escritor em crise. Depois de uma forte decepção, ele não só quer se desfazer de toda a sua obra como não consegue mais produzir nada e agora precisa disso para sobreviver. A figura do escritor em crise é recorrente no suspense de terror, mas não só nas telas, como na vida. O que fica muito bem no papel é um pouco confuso para levar à tela, o jovem ator Winslow Fegley é carismático e segura bem o papel, mas é justamente no lidar com a frustração do não conseguir escrever, com o bloqueio criativo que tem os seus momentos de fraqueza. Mas não é nada que comprometa.

Noitários de Arrepiar
© Christos Kalohoridis/Netflix

Junto com ele no apartamento encantado estão uma ótima Lidya Jewett, como Yasmin, sua companheira de infortúnio e a Maria do conto modernizado, uma menina frustrada, mal-humorada, mas que não resiste muito tempo; e a gata Leonora, também nada amistosa no começo, aliás, bem agressiva, que some e aparece, mas sem sorriso divertido. E, claro, aparecendo todos os dias, Natacha, a bruxa, vivida por uma esforçada Krysten Ritter, que mantém o tradicionalismo das cores, está sempre ali no preto, vermelho e roxo, mas com figurinos modernos e elaborados da especialista no gênero Autumn Steed (Brightburn e A Colmeia).

O design de seus contos, bem infantis, é claro, são outro atrativo de Noitários de Arrepiar, com cartelas em vermelho e artes contrastantes que se utilizam das mesmas cores. É um filme que vai o tempo todo assim, brincando com o lúdico, transitando entre as fases, assustando muito e brincando com os sentidos, como faz Coraline, por exemplo, ou ParaNorman, de maneira bem mais sutil. É um filme que merece atenção por conseguir alcançar esse meio do caminho, por imprimir na tela uma transição que passa despercebida, e estar ali como o “já vi isso antes” futuro para os que estão começando a jornada e o “olha isso” para os que já deram muitos passos nesse caminho.

Um grande momento
Um picador solto na estufa

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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