- Gênero: Drama
- Direção: Laís Bodanzky
- Roteiro: Laís Bodanzky, Luiz Bolognesi, Laura Malin, Chico Mattoso
- Elenco: Cauã Reymond, Luise Heyer, Victoria Guerra, Isabél Zuaa, Rita Wainer, Francis Magee, Welket Bunguê, João Lagarto, Luísa Cruz, Isac Graça, Luiza Gattai, Dirce Thomas, Marcial Mancome, Sergio Laurentino, Calvin Denangowe
- Duração: 96 minutos
-
Veja online:
A cena de abertura de A Viagem de Pedro não nos prepara para o que virá a seguir. Didática, repleta de frases de efeito daquelas de vender trailer, o filme não reside nessa cena – ainda bem, mas o susto é real. Após ela, o novo longa (e o mais ambicioso) de Laís Bodanzky acontece de outras formas, multiplicando temas, ressignificando mais uma vez esse personagem que já teve tantas caras e texturas tanto no cinema quanto na própria História, que insiste em exumá-lo para novas matizes. Aqui, Laís tem a coragem que talvez tenha faltado a muitas tentativas anteriores, ao mexer em um vespeiro que praticamente não tem mais dono. Foram necessários alguns séculos para que esse filme fosse possível, sem interferências ou celeumas práticas. Na verdade, esse Pedro I é mais que necessário.
Aurora de reconhecida contemporaneidade, que trata de temas mais ou menos espinhosos à luz da naturalidade que cabe em nosso tempo, seu interesse por transformar a família imperial original (ou ao menos, o jovem Imperador) em parte da sua filmografia soa, a princípio, deslocada de sua configuração. Seja como for, Bodanzky não moderniza o homem ou sua trajetória, não transforma em ícone pop um personagem cheio de ranhuras. O que ela pretende aqui é conjecturar o Homem que insistem em não ver, produto de um tempo onde o machismo, o racismo, a prepotência e a arrogância eram permitidas a um líder supremo. Que estejamos nas mãos de uma versão ainda mais nojenta dessas características hoje é sinal da pontualidade do projeto – longe de mim comparar essas duas figuras, uma histórica e outra asquerosa.
Mas, debates atuais são necessários para rever a postura dos homens, históricos ou ordinários. Sem panfletar, sem deliberar sobre como “no futuro, o mundo será de tal forma”, criando um paralelo com o hoje, didatismo tão comum na dramaturgia menos ambiciosa, a autora relega isso à já comentada primeira cena. A partir dali o que entra em cena é um processo de reparação a muitas vozes do passado, mulheres, negros, com maior ou menor poder, seres menos visíveis como D. Miguel, sem esquecer o personagem central, cujas tintas apontam para o seu período, não abafam sua importância, mas refletem sobre um retrocesso social que precisa ser observado sem naturalização, para que sua virulência não seja continuamente perpetrada.
O Pedro de Bodanzky é o Dom conhecido por todos, mas também é o macho inseguro de hoje, que sofre com os lampejos da própria escrotidão. Sem medo de parecer tóxico em um tempo onde a expressão não existia mas a definição é claramente percebida, Cauã Reymond se assegura de compor tintas múltiplas para esse homem, que vai de um medroso assustado com teorias de conspiração a um ogro ignorante, perverso e quase sádico com as muitas mulheres do qual ele se orgulhava de ter se deitado. As cenas protagonizadas pelo ator tem um relevo quase assustador, muitas vezes, onde vemos um inconsequente com o próprio poder perder a mão em questões mundanas e descambar com frequência para a canalhice, independente de com quem trata. Há coragem no tratamento proposto por Bodanzky e na postura de Raymond, despido quando precisa, inclusive de qualquer gentileza em muitos momentos.
Essa viagem, apesar de seu histórico protagonismo, não é excludente ao seu redor. Não convém voltar a citar cachorros chutados anteriormente, mas a autora aprendeu com os erros alheios e fez um filme amplo para mulheres e negros, dando camadas à grande maioria de seu imenso leque de personagens. Com um elenco espantoso, A Viagem de Pedro constrói cenas memoráveis onde seu personagem central nem está presente, como o embate entre duas figuras em determinados polos opostos em que a negritude não ajudou a unir, e até contribui para o inverso. Suas personagens femininas também têm certa tridimensionalidade e deixam claro suas vozes, independente do protagonista querer ouvi-las. São tantas questões descritas e apresentadas com propriedade, que o problema central do filme se apresenta.
Com pouco mais de 1 h e meia de projeção, A Viagem de Pedro pedia pelo menos meia hora a mais, para que tudo fosse melhor desenvolvido e contextualizado, sem soar como um grupo de belas cenas onde seu propósito fosse melhor unido. O problema não está na montagem, mas na ausência de ainda mais amplitude, como prova a incrível personagem da sempre brilhante Isabel Zuaa, que implora ainda mais desenvolvimento. Esse é o pecado de um filme que até nesse excesso típico de biografias históricas consegue acertar pois dá o tom certo a cada passagem, só impedindo seu respiro que aconteceria facilmente se houvesse tempo para que suas ramificações soassem menos dependentes de uma liga fortalecida.
Tecnicamente impressionante (a fotografia de Pedro Marquez, com sua luz natural e seus acertados recortes, é um capítulo a parte), A Viagem de Pedro escorrega somente nesse lugar onde tantos também não alcançam; ao mirar em seus tantos alvos, o tratamento individual impecável não consegue fazer o conjunto progredir. Mas o rigor para compreender cada passagem, cada elemento narrativo, está muito evidente, soando como uma colcha de retalhos feita de cetim javanês – ainda assim com seus recortes e costuras aparentes, mesmo que suntuosos. Sua carga dramática, o lugar que compreende todas as vozes possíveis em cena, está quase sempre completo e compreensível.
Um grande momento
O ebó