Crítica | Outras metragens

A Vida Secreta de Delly

O voo das borboletas

(A Vida Secreta de Delly, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Marlom Meirelles
  • Roteiro: Marlom Meirelles, Delly Batista, Coletivo de Participantes da Oficina 'Documentando'
  • Duração: 18 minutos

Delly Batista tem três vidas. Nasceu Edelfan, tornou-se Delly, e como Del, se reinventou. Como explicar tamanha multiplicidade no corpo e na alma, se não viver no Brasil, nesse tempo onde se matam mulheres trans e cis com igual violência, e que o foco no corpo preto é cada vez mais evidente? A Vida Secreta de Delly abriu a noite do Cine PE 2022, e não poderia existir trabalho mais significativo para iniciar a maratona cinematográfica que não com um grito que não sai da boca. Ele é expressado pelas lágrimas de uma personagem que nem tem consciência do quanto contribui para a linguagem cinematográfica, com a mesma suavidade com a qual entendeu seu lugar no mundo. 

Marlom Meirelles, admirável realizador que segue pelo mundo com o projeto de formação ‘Documentando’, formando indivíduos para o audiovisual, alimentando novas plateias e revelando histórias fascinantes, alcança aqui um outro lugar de estudo de personagem. Seu olhar descobre essa mulher que vive à margem de muitas representações, para dissecar o quanto estamos vivendo em prol dos outros, negando a nós mesmos. Delly é feliz doando, é uma escolha particular pelo encontro que seu corpo se transmute para acolher o outro. Com isso, não percebe que mais uma vez está perdendo parte de si, ao ganhar parte do próximo. 

É um jogo cheio de camadas feito aqui em A Vida Secreta de Delly, que motiva o surgir de uma mulher que já viveu e sofreu, apanhou inclusive de si mesma, mas precisa renascer em um novo corpo, mais uma vez forjado. Pelo bem querer que nutre por quem nem conhece, Delly – que negou Adelvan – permite a chegada de Del, e assim criar um equilíbrio imperfeito em uma sociedade adoecida. A clareza dos relatos de Delly, seu mergulho em um passado de tragédias e a aceitação de sua própria personalidade é que transforma a narrativa que Meirelles pega emprestado para realizar esse delicado caleidoscópio humano, que mostra tanto de sua personagem quanto de nós mesmos. 

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Quantas vezes já usamos máscaras, máscaras de máscaras, sendo tipos para corresponder a expectativas que não nos cabe? Com sutileza ímpar, o diretor deixa a estrela no centro do palco sabendo que sua própria voz já é o colapso da improbabilidade. Inclusive ao vencer e se tornar de novo a mulher que é, Delly demonstra nova camada de resiliência, que Meirelles deixa livre para transformar. Ele filma as marcas de bala com a mesma naturalidade com quem filma o batom no espelho, tudo é comum naquele corpo mutante. Essa naturalidade que imprime no despir de sua personagem-clamor mostra que Meirelles está pronto para ir além de A Vida Secreta de Delly e explorar muitas novas verdades, e que o cinema é a arte da invenção subjetiva, que contempla tudo aqui. 

Se a trilha, ainda que longínqua, lá no fundo incomoda pela insistência, não é isso que tira de A Vida Secreta de Delly sua relevância, emocional ou cinematográfica. É como ousar reclamar a respeito da moldura diante de uma obra maior que a mesma; não é o mais perfeito lugar de chegada. Mas o fato de que isso tudo acontece através de uma oficina de criação entre pessoas que mal sonhavam em estar nesse lugar, e que são colocados por Meirelles como co-criadores, já transforma esse projeto em uma experiência especial e muito mais sensível. É apara abraçar os sentidos diante de alguém que segue sendo uma experimentadora de possibilidades, livre para abraçar tudo que lhe é possibilitado. Ainda promove um comovente libelo à educação e a formação acadêmica, em seu amor e luta pelo estudo.

É um sonho de menino/menina, que se transforma em belas borboletas. A liberdade de ser quem se precisa ser, quem se pode ser, como Delly, encontrando outra liberdade, a de se transfigurar no porta-voz de uma nova gama de marginais, como Meirelles. Ou vice-versa? Delly e seu diretor/descobridor voam juntos rumo a um lugar cuja filmagem já traduziu antes, mas poucas vezes com essa nudez de alma. Uma nudez que, ironia das ironias, é ainda mais despudorada quando (tra)vestida. Desse casamento que não se propõe originalidade, nasce a beleza de ter quantas vidas forem necessárias. É a farsa que o cinema conta há 125 anos, a magia de ser muitas pessoas em uma só vida. Delly Batista, profissão atriz, encontra Marlom Meirelles, profissão fazedor de sonhos. 

Um grande momento

Delly tira a make e veste o boné

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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