Crítica | CinemaDestaque

Ainda Estou Aqui

Os que ficaram

(Ainda Estou Aqui, BRA, FRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Walter Salles
  • Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega
  • Elenco: Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro, Marjorie Estiano, Maeve Jinkings, Camila Márdila, Antonio Saboia, Helena Albergaria, Valentina Herszage, Humberto Carrão, Thelmo Fernandes, Dan Stulbach, Olívia Torres, Caio Horowicz, Luiza Kosovski, Gabriela Carneiro da Cunha, Carla Ribas, Luana Nastas, Daniel Dantas, Maria Manoella
  • Duração: 136 minutos

Um dia de domingo na praia com a família. As crianças jogam futebol, vôlei e se bronzeiam com Coca-Cola enquanto a mãe relaxa nas águas do Leblon. A decisão sobre o novo cachorrinho e a travessia para chegar em casa já dão as pistas sobre a dinâmica familiar e as condições financeiras dos Paiva, com quem estaremos pelos próximos 136 minutos. Muitos filhos, muitos amigos, festas, encontros, momentos, fragmentos doces dessas relações. Porém, é o Brasil de 1971 e aquilo que se vê no interior não se parece em nada com o exterior. A segurança e o afeto são contrários aos caminhões de soldados que transitam pela Avenida Atlântica ou aos helicópteros que sobrevoam o Rio de Janeiro. O medo e a ansiedade são constantes. 

Ainda Estou Aqui, novo filme de Walter Salles, volta à ditadura militar de uma maneira diferente daquela que costumamos ver no cinema. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, conta a história da prisão, desaparecimento e homicídio do ex-deputado Rubens Paiva, tendo como figura central a mãe do escritor, a advogada Eunice Paiva. O longa acerta ao trazer de maneira muito assertiva a realidade de um período nefasto. Fazendo com que aquela realidade da família, por mais que tenha seus momentos de leveza, venha sempre assombrada por um governo de violência e terror. Retratos de um cotidiano que se desenvolve – ou tenta – tendo o mal ao redor. 

Além das imagens que se apresentam em tela, com blitze policiais ou nas muitas viaturas que desfilam pela cidade do Rio, há a memória do espectador, ciente daquilo que se passou com o país a partir de 1964. Os fatos que estão prestes a ser narrados também são conhecidos e fazem parte da construção do imaginário comum de horror que perdura. A História e a história se encontram. É assim que os sentimentos próprios, prévios, vão se mesclar a novos, provocdos, gerando sensações desde os primeiros momentos do longa.

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A memória, portanto, é um  elemento fundamental ao longa – inclusive, é a principal motivação do livro no qual é baseado – e Salles busca elementos que a estimulem, fortalecendo ainda mais a conexão do espectador com a história. Ainda Estou Aqui conta com uma ambientação cuidadosa, com inserções daquele Super-8 que marcou a época e com músicas inconfundíveis – precisamos falar, escolhidas de maneira muito adequada para o ritmo que se quer imprimir ao filme. E também marcar as realidades que contrastam por um tempo: a protegida pelas paredes da casa dos Paiva e aquela que toma conta do país. Positivamente, a memória instigada mina a intenção de criar um espaço seguro. A tensão para quem acompanha o desenrolar dos fatos está sempre ali, aguardando o momento da invasão de um cenário no outro.

Quando isso acontece, Eunice surge com toda a sua força e a atuação de Fernanda Torres, que já era impressionante, toma conta do filme. Assumindo o papel de tantas mulheres, que durante a ditadura tiveram que viver por anos o “luto sem corpo” dos desaparecidos políticos, ela se tornou um ícone da luta pela justiça na época e, agora, tem a devida representação. Como outras tantas na História, o modo como enfrenta o papel de sobrevivente e força de resistência é singular. O ambiente que cultiva ao seu redor se parece com o visto até então, mantendo características diversas da perversidade, sem ignorá-la. Há medo, há dor, há trauma. Nada do que aconteceu foi escondido, mas o que vão ver e como aquela vida será vivida será determinado por eles. 

Salles é tradicional na forma, habilidoso nas escolhas e calcula bem cada elemento que coloca ou não em cena. Ele também sabe que muito da força de Ainda Estou Aqui vem da interpretação de Torres — embora seja bom ressaltar que além do trabalho brilhante da atriz, o filme ainda conta com uma atução incrível de Selton Mello como Rubens Paiva e uma participação emocionante de Fernanda Montenegro — e tem consciência do valor da história que conta. Como um bom diretor, dá espaço para que ambas se complementem e engrandeçam. E tem ainda os seus momentos, aqueles que são só dele, como a dolorida representação do vazio.

Não à toa, Ainda Estou Aqui chegou onde chegou e toca quem quer que o assista desde sua estreia mundial no Festival de Veneza. Mesmo que se utilizando de Oscar bait (talvez nem precisasse, mas porque não?), apareceu com muita justiça em Hollywood, vem causando frisson e deve dar as caras na temporada de premiações do ano que vem. Cotado está. Até lá, vai emocionar os brasileiros que forem aos cinemas conferir um pedaço da História que, embora algumas vezes retratada, deveria ser muito mais conhecida para evitar que absurdos sigam sendo repetidos no presente. E vai apresentar a muitos a dra. Eunice Paiva, uma mulher que, sem dúvida alguma, fez a diferença.

Um grande momento
Sorriam

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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