Crítica | Catálogo

Aldeotas

A memória que me fica

(Aldeotas, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Gero Camilo
  • Roteiro: Gero Camilo
  • Elenco: Gero Camilo, Marat Descartes
  • Duração: 82 minutos

O maior desafio de Aldeotas é cumprido (e suprimido) com louvor pelo diretor estreante Gero Camilo. Ator e autor premiado, Camilo escreveu a peça de teatro ‘Aldeotas’ e a estrelou, junto de Marat Descartes primeiro e depois de Caco Ciocler, em suas montagens mais evidentes. Ao desconstruir o que foi visto inicialmente em palco econômico e traduzir a disposição e a proximidade do palco para a imaginação capaz da tela, o autor consegue o feito de extrapolar sua criação justamente pela base que a própria obra já apresentava. Os caminhos que a memória percorre, os desdobramentos possíveis quando acessamos o passado vivido, o que resta de um tempo que não é mais nosso que não a emoção, os sentidos, muito mais do que as questões palpáveis – tudo isso está no texto, traduzido agora para o cinema. 

Tudo isso é matéria-prima emocional e concreta de uma obra tão poética quanto verdadeira. Poética no que a palavra e a linguagem constituem, a moldam e ao mesmo tempo libertam, e verdadeira no que cada um daqueles eventos recontados pela memória têm de efetivos e afetivos, cercados de certezas. Aldeotas surge da morte do presente para fabular uma existência do passado, a poesia que nos carrega de um plano a outro, e cuja imaginação completa as possíveis lacunas de uma vida, ou duas. Uma parceria encerrada pela violência da incompreensão, uma ruptura que nunca foi sentida pelo que é emocional, e que transcende a presença. Essa é uma das leituras dessa adaptação, o que é verdadeiro e perene não precisa de detalhe; são as texturas sensíveis que falarão no lugar dos olhos. 

Aldeotas
Divulgação

Quase inteiramente filmado em um galpão paulistano na Mooca, o filme possibilita essa liberdade poética sem perder contato com a concretude porque parte de um espaço de recriação de um passado memorialista. Ao chegar ao velório de Elias, Levi sai de si e volta para o núcleo daquela amizade – sua formação, sua base, sua ramificação pelos anos afora, está tudo impresso na memória, não precisa de detalhe. O que é essencial, ficou tatuado como digital nos registros ainda acessíveis do intelecto, e é trazido de volta para o espaço do hoje através de um sem número de escolhas. Luzes, líquidos, vapores, objetos, toques, palavras: tudo cabe na tentativa de recuperar um passado que não deixa de existir, mas que perde as ranhuras para ganhar apenas sensibilidade. 

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Nessa corrida contra um tempo e a favor de outro, Aldeotas nos ensina a mensurar o tempo da palavra, do gesto e do afeto. Conjugando diversos verbos para traduzir as mesmas sensações, o filme é o reencontro de um homem com uma história que é sua, e que nunca será esmaecida. Pelo contrário, vez por outra até se mostrará ainda mais vibrante que originalmente; nossa memória cria peças, e reverbera com importância mais uns temperos que outros, e essa é a beleza das histórias, elas cingem com a subjetividade de quem as viveu. Por isso o disparador da fábula aqui, o reencontro com o grupo de amigos que viajava ao centro da terra, já é tão mágico, porque sela toda uma história de reencontro com alguém que nunca se perdeu – si próprio. 

Aldeotas
Divulgação

Ver a integração de dois atores tão imensos quanto o próprio Camilo, que brilhou em obras como Carandiru e Bicho de Sete Cabeças, e Marat Descartes, de Trabalhar Cansa e Quando Eu Era Vivo, é de extrema felicidade, subjetiva e também para a Arte em si. É fácil chegar no palco de um teatro e, com a magia que o mesmo comporta, ver uma criança no corpo de um adulto, isso nem é raro. Muito mais perigoso é acessar um terreno para algo naturalista, como muitas vezes o cinema é, e desordenar nossas percepções ao nos fazer nesses dois atores duas crianças pequenas até chegarem na adolescência. Há uma modulação toda especial em ambos, que claramente amadurecem cena a cena; um trabalho tão indissociável que só nos resta realmente assistir a tudo boquiabertos, com a facilidade que parece brotar de tanta técnica, de tanta experiência e de tanta amizade. 

Com uma direção de arte primorosa de Carla Caffé e uma fotografia inspirada de Marcelo Trotta (especialmente complexa de conceber, por imaginarmos planos fechados para um filme que é pura liberdade de ação estética), Aldeotas, sem pedir licença a ninguém, é um dos mais bonitos e singelos filmes de 2022. Brinca com nosso encantamento por um tempo que precisa da memória para reviver, e consegue uma demonstração rara de carinho pela amizade entre dois homens tão diferentes, mas tão honestos com o que sentem um pelo outro. É um filme mais que necessário para o nosso tempo de derramamento de sangue, procurar a delicadeza nas mãos entrelaçadas da amizade uma vida inteira, que nem o tempo, nem a intolerância, e nem a distância puderam apagar. Nós nunca saímos totalmente de nossas dores, mas existe um lugar lá no fundo onde só é possível um sol que brilha mais que o sol. 

Um grande momento
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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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