Crítica | Catálogo

Amira

Reconstruções da violência

(Amira, EGI, JOR, EAU, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Mohamed Diab
  • Roteiro: Mohamed Diab
  • Elenco: Tara Abboud, Saba Mubarak, Ali Suliman, Ziad Bakri, Suhaib Nashwan, Reem Talhami, Sameera Asir, Saleh Bakri, Kais Nashif, Mohammad Ghassan, Khalid Al Tarif
  • Duração: 95 minutos

Já disse, há pouco tempo por aqui inclusive, que não existem mais histórias inéditas, e sim subjetividades, de autores e público. De vez em quando, no entanto, damos de cara com uma daquelas produções que nos desafiam a repensar a afirmação anterior. Não pensando exclusivamente na qualidade, mas estritamente no que está sendo contado, sob quais aspectos e com a mixagem dos elementos mais inusitados em sua união. Amira, que estreia nos cinemas essa semana, provoca no espectador uma sensação daquelas que encontramos ao assistir a Sob a Pele ou A Separação – com a devida humildade, lógico. A cada novo avanço da narrativa, temos a certeza que aquela combinação ainda não havia sido testada. 

Com seus elementos reconstruídos a partir de uma ótica renovada, nada em cena é exatamente novo, o que refresca todo o quadro é a certeza de que cada cavidade do roteiro foi descoberta ou cerzida como uma novidade. Partindo de inspirações verídicas diante do grande número de mulheres grávidas através do contrabando de esperma das prisões árabes, a trama já parte de uma premissa inédita ao menos para a parte de cá do globo. O que se desenrola a partir dessa informação que é dada de maneira prosaica ao espectador é uma peregrinação pela verdade e pela condução da mesma por seus detentores. É uma mensagem muito cara ao cinema iraniano, por exemplo, a descoberta do poder superior perpetrado pela busca inesgotável pela verdade. 

Aqui a verdade está em um teste de DNA, que revelará uma paternidade incontestável até então. Mas o que Amira promove é a revelação de caminhos narrativos rejuvenescidos dentro de uma premissa muito inusitada – ao menos para o resto do mundo, que não a Arábia Saudita. O filme mistura contrabando de sêmen de dentro de uma cadeia, com uma lógica de vingança familiar dentro de um núcleo que é quase uma empresa comercial, de tão sisudo, “profissional” e arcaico. Não precisa adentrar todas as situações surreais que se embrenham pelo roteiro para saber onde isso tudo vai desembocar: na velha misoginia dos países do Oriente Médio, que atrelam à mulher qualquer e toda culpa acontecida a respeito de qualquer problema ou questão. 

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O diretor Mohamed Diab (que agora está na Disney dirigindo episódios de Moon Knight) é um caso raro de profissional que teve todos os seus filmes lançados no Brasil; isso é raro para qualquer profissional, imagina para um egípcio. Os anteriores e interessantes Clash e Cairo 678 já tinham uma cota de polêmica para lidar, cada um. Parece que nesse novo filme o cineasta é acusado de incitar uma espécie de movimento anti-Palestina, o que não creio acontecer, levando em conta que os presos políticos do filme são retratados como heróis, dentro e fora das prisões. Suas opiniões são consideradas sagradas e o protagonista masculino do filme, é tratado como o único homem sensível à causa de suas mulher e filha. 

Amira, no entanto, não deixa de criticar a postura misógina, que contribui para os discursos de feminicídio em qualquer parte do mundo. É uma sociedade que ainda mata mulheres por ‘defesa da honra’, são pessoas que ainda acham comum apedrejar uma mulher por ser de outra etnia. Todo esse tipo de situação corre em paralelo à família de Amira, Warda e Nuwar, três pessoas destruídas por um erro do passado que não foi cometido por nenhum deles. Ainda que discordem das penas que poderão ser aplicadas às suas protagonistas, o filme mostra seus personagens prontos a acatar as decisões seculares do país, que podem provocar uma tragédia ainda maior. O impacto é pela espiral de acontecimentos que colocam os membros da família uns contra os outros, quando todos foram lesados igualmente. 

Diab não somente é um cineasta muito corajoso, com uma voz muito particular em relação ao que acontece à sua volta, como mostra uma postura absolutamente empática a situações maiores que sua existência. São conceitos milenares de violência normatizada e que contribuem para uma intolerância de gênero, religiosa e moral que nunca fez sentido. Além do que constrói em discussão social, o diretor ainda mostra um roteiro que não cansa de surpreender em suas novas formulações de ideias, sempre expandindo os limites de sua premissa. Enquanto cineasta, Diab entrega aqui mais um filme de rigor inegável e absolutamente eletrizante, que não para de hipnotizar o espectador com descargas de adrenalina e um trabalho imagético cuidadoso; Amira é uma surpresa explosiva. 

Um grande momento

Nuwar se emociona com a visita da filha

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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