Crítica | Catálogo

Pacifiction

Corpos em conflito

(Tourment sur les îles, FRA, ESP, ALE, POR, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Albert Serra
  • Roteiro: Albert Serra
  • Elenco: Benoît Magimel, Pahoa Mahagafanau, Sergi López, Lluis Serrat, Montse Triola, Marc Susini, Alexandre Melo, Matahi Pambrun
  • Duração: 165 minutos

É difícil acreditar que um diretor como Albert Serra tenha concebido Pacifiction, seu mais novo filme, sem pensar em nenhum momento no Beau Travail de Claire Denis. O clássico instantâneo de 1999 sobre a dicotomia entre corpos, trabalho e desejo nunca envelhece e encontra nesse novo longa do diretor de A Morte de Luís XIV um binômio estarrecedor. A surpresa é em perceber que, mais de 20 anos entre os títulos, e pouca coisa foi alterada em como o Homem percebe suas falhas no entendimento de si mesmo, de sua própria natureza e do que faz, exatamente, com a sexualidade que não lhe é percebida de cara. Ao largo dessas questões, é fascinante que esses temas geram filmes que conversem de muitas formas, e ainda assim não negue particularidade a nenhum dos dois. 

Se na obra-prima de Denis, a política girava em torno do lugar que se imagina a própria existência, ou seja, era um ato político até muito moderno, absolutamente ligado a 2022, Pacifiction é uma obra cujas curvas políticas são muito acentuadas e atreladas ao jogo de poder que emerge das relações internacionais. Mas nada disso nega o caráter individual do que poderia se entender como corporificação política, uma alegoria consciente de que o corpo de um ser humano é, por si só, um material de afirmações contínuas de liberdade. A ideia de desconstruir o corpo estrangeiro em todas as suas definições possíveis (incluindo as poéticas) é uma questão sofisticada do longa que se aperfeiçoa com a duração. 

Pacifiction
Cortesia Mostra SP

Tem algo de uma busca espiritual nesse cenário paradisíaco, uma espécie de paraíso perdido que não cura nenhum emocional, e talvez até piore alguns indivíduos. Essa busca não está na realização sexual ou mesmo em um encontro transcendental religioso, mas de um realizar-se profissional, identificar seu talento e explorar seus predicados da forma que for. É algo que não está em uma procura tão primordial assim, mas que constitui parte integrante de seus personagens, principalmente o sr. De Roller e a misteriosa Shanna, que se conectam muito e precisam um do outro para a evolução. Ao redor deles, os outros são ainda mais representações ininterruptas do trabalho, enquanto força motriz premente ao Homem. 

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É Shanna quem oxigena aquele olhar masculino, de maneira sempre elegante, mas cujo poder de sedução exatamente a eleva. Seria Shanna uma ‘femme fatale’ moderna? A interpretação sinuosa de Pahoa Mahagafanau confere tudo o que a personagem exige: mistério, charme, timidez, mas ainda um grau elevado de auto confiança e uma pitada generosa de sensualidade. Ainda que os objetivos da personagem não sejam revelados de maneira explícita, o fato dela estar sempre em busca de um novo degrau a confere carga evidente. Conforme cresce em Pacifiction, a atriz também ganha uma oportunidade única de demonstrar suas potencialidades, e o faz com louvor. Ela é a partner perfeita pro que o filme acaba se tornando. 

Pacifiction
Cortesia Mostra SP

Pacifiction acaba truncando suas ideias a partir do momento que não toma decisão sobre qual filme é o mais importante e merecia mais espaço. Serra fica em cima do muro por provavelmente enxergar o fascínio nas duas passagens, e entendo que de fato isso não pode ser negado. De um lado, esse olhar quase extraterrestre sobre o corpo e seus desejos, ou como esse corpo desperta novas frequências de auto entendimento; do outro, a política exercida de maneira macro, com suas deliberadas intrigas. Em uma cena como a da rinha de galo, o filme consegue conjecturar seus dois olhares, mas não é sempre que isso acontece, diminuindo a potência da obra inteira. É um pecado que não arranha seus momentos de brilho, mas diminui as capacidades individuais de seu todo.

Essa evidência fica ainda mais forte porque Serra geralmente consegue amalgamar muitos conflitos e temas em suas obras. Liberté, sua obra anterior, tratava exatamente sobre política enquanto exibia inúmeros atos de, digamos, libertinagem entre nobres da corte francesa, e tudo fluía com impressionante dedicação. Em Pacifiction, o personagem que une tudo, vivido por Benoît Magimel, consegue dar unidade estética ao projeto, com seu corpo e voz ligando seu movimento externo. No campo das ideias, Serra atropela seus meios e acaba criando um filme ligeiramente disforme, ainda assim de impacto inegável. Impacto esse que já começa no trocadilho do título em inglês, a pacificação é realmente um material somente para a apreciação ficcional, em grande parte do mundo.

Um grande momento
O surfe

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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