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Anônimo

O homem, eterna criança

(Nobody, EUA, JAP, 2021)
Nota  
  • Gênero: Ação
  • Direção: Ilya Naishuller
  • Roteiro: Derek Kolstad
  • Elenco: Bob Odenkirk, Aleksey Serebryakov, Connie Nielsen, Christopher Lloyd, Michael Ironside, Colin Salmon, Billy McLellan, Gage Munroe, Paisley Cadorath, Aleksandr Pal, RZA
  • Duração: 92 minutos

Durante os primeiros 15 minutos de Anônimo, super estreia da semana do Telecine, enquanto o plot não é inteiramente esclarecido, o público pensa estar fazendo parte de um delírio trumpista (pra não citar nosso infeliz responsável atual pela cadeira de maior posto do país). O protagonista impediu a violência de entrar na própria casa da maneira mais pacífica – e acertada – possível, e ouvimos de todos os lados de que sua atitude foi errada; deveria sim ter brigado, surrado, até mesmo matado os invasores. Hutch é reprimido pelo vizinho, pelo cunhado, pelo sogro, até pela polícia e pelo próprio filho, que o olham com escárnio e desprezo. Ora bolas, estamos mesmo participando de uma conferência pró-armamentista?

Tudo muda, e muito rápido, depois desse prólogo inicial, que se segue a uma sequência de abertura que nos lembra a abertura de O Passageiro, dirigido por Jaume Collet-Serra. A rotina como parte integrante da vida dos seres, e que os desestabiliza por forçá-los em uma realidade ilusória do real, de repetição e aprisionamento. Após compreendermos o balanço das horas diário e a estrutura que jaz sob o homem comum, o filme ganha fôlego e propósito acertados, condizentes com o roteirista que está por trás do longa – o mesmo da cinessérie John Wick. A partir da realização de que o título do filme, tanto o original quanto o em português, eram uma piada, fica claro que o filme está indo para outro lugar, ou para um lugar mais confortável, embora eficiente.

Um filme protagonizado por um real “ninguém” teria sido um risco mais interessante, mas Anônimo está disposto a nos mostrar muito mais que isso, e também brincar com uns signos reconhecíveis. Bob Odenkirk, o protagonista de Better Call Saul, aqui está em cenário que remete diretamente ao Walter White de Breaking Bad, sua série de origem. Hutch mora em um subúrbio idêntico ao de White, sua casa se localiza na exata mesma curvatura onde a casa que a família White vivia, ele sofre com o deboche de todos à sua volta, muito pela pacificidade com que encara a vida. Ambos estão prestes a sair de uma situação amorfa para uma existência onde encontram sua natureza; o sorrisinho que Hutch dá antes de levar um tiro no parabrisa de um carro é o suficiente para que possamos ler em seu rosto: “estou em casa novamente”.

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Anônimo (2021)
Allen Fraser/Universal Studios

O diretor Ilya Naishuller foi notado em Missão Extrema, todo filmado em primeira pessoa e que fez um certo barulhinho. Ele não repete o esquema aqui, mas nos coloca na linha de frente da ação praticamente o tempo todo, com a propriedade de quem entende de um assunto. Apesar de estar no segundo longa, Naishuller consegue passear por uma dose de realismo cênico mesmo se tratando de um filme de gênero; onde qualquer outro enxergaria pirotecnia, o jovem russo não perde suas texturas ao tentar comunicação com propostas aparentemente antagônicas. Depois do que Chad Stahelski e companhia propuseram ao cinema de ação, é curioso perceber que suas referências também estão ali, mas não unicamente.

Anônimo promove escapismo desenfreado sem abrir mão de uma superfície que amplie algum grau de discussão moral. Lançado há um ano nos cinemas americanos, ou seja, no meio da pandemia, conseguiu uma bilheteria que refletiu sua qualidade em tempos onde o cinema estava ainda em tentativa de recuperação. Sua mistura sagaz do que seria um “super-herói sem capa” com um típico homem comum suburbano e classe média americano, deu certo porque o público olha para Odenkirk e identifica exatamente as duas coisas. A possibilidade de criar uma persona naturalista, como se fosse um primo nosso, com a de um sujeito potencialmente perigoso e reconhecido como tal.

Além de tudo, Anônimo pincela um sem número de cenas que já nascem clássicas, como a da primeira explosão dele, dentro de um ônibus; a cena da perseguição de carros; a cena onde o líder russo canta The Impossible Dream; são muito momentos de inspiração coletiva, onde roteiro, direção, fotografia (de Pawel Pogorzelski, de Fresh) e a montagem (de William Yeh e Evan Schiff, de John Wick 3) dão o melhor de si em composições que vão do absurdo ao brilhante. Um filme que promove o renascimento dos homens através da violência, acaba por ser muito mais um retrato do que é necessariamente “ser menino”, regada de cobertura niilista para contar o desmoronamento das noções mais básicas sociais em torno de um bem comum – a destruição como reconstrução.

Um grande momento
What a wonderful world

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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