(Antena da Raça, BRA, 2020)
- Gênero: Documentário
- Direção: Paloma Rocha, Luís Abramo
- Roteiro: Paloma Rocha, Luís Abramo
- Duração: 83 minutos
“Num tempo calmo e tranquilo, para trazer um pouco de história didática pra dentro da televisão” surgiu o programa Abertura na extinta TV Tupi. Os episódios (ou melhor, quadros) do programa eram dirigidos por ninguém mais, ninguém menos do que o baiano Glauber Rocha. E como a figura histórica do nosso cinema, o nome seminal do cinema novo e o agitador cultural que fez tremer o Brasil enquanto vivente desse planeta rende muitos e muitos documentários, eis mais esse Antena da Raça. Dirigido pela filha dele e de Helena Ignez, Paloma Rocha, codirigido por Luis Abramo, o filme homenagem e reflexão foi selecionado para a mostra Cannes Classics e encerrou o festival Olhar de Cinema.
Da Cruz na Praça até a idade terrena tropicalista épica, muito mar virou sertão e com muito mais do que uma câmera na mão, Glauber foi virando nossas cabeças do avesso. Os extratos do Abertura – que só durou uma temporada, gravada entre 79 e 80 – dão conta não só do espírito daquele tempo como do “desmascaramento histórico” empreendido pelo cineasta baiano, com o auxílio sagaz de Severino, Super Homem (bode), Brizola, Caetano e Luiz Carlos Maciel. O cantor conterrâneo de Glauber participa também na atualidade, quando Paloma promove alguns encontros com amigos do pai e nomes importantes na biografia dele e na das artes brasileiras. Com Caê, ela assiste à performance da vovó do funk, Dona Luda – e vai traçando paralelismos entre as falas de MC Mingau e os inquéritos que Glauber fazia com Brizola, sobre o momento daquele Brasil em plena ditadura. Afinal, “os artistas são a Antena da Raça” e os cineastas evocam a potência e contundência do seu objeto-humano para dialogar com a convulsão atual nesse país em transe.
O que Glauber fazia e que é raro, pois inexato para mensurar, era pensar através do cinema possibilidades de renascimento, um pensamento revolucionário pois conectado com o de outros cineastas latino americanos (Tomas Gutierrez Alea, Fernando Solanas) mas que também não se omitia de seu desdobramento social. Podia parecer que o cinema novo só seria acessado pelos cinéfilos, cheios de preconceitos com o popular e fechados na redoma burguesa do suposto “bom gosto” então Glauber resolveu encampar a televisão como uma ferramenta para expor sua retórica, de certa forma uma crítica genérica sobre a própria história do Brasil objetivando reconstituir a visão, colonialista (“A única força desenvolvida desse continente é a cultura negra e índia”) encontrando os segredos de fabricação desse projeto de país e compreendendo como que “esse passado desmemoriado” nos abastece com a falta da esperança.
Nas entrevistas na atualidade, Paloma vai conduzindo as conversas tentando não só buscar os comentários de Luiz Carlos Barreto, de Zé Celso e da própria mãe, Helena Ignez, sobre o que Glauber estaria ali representando mas também codificar como a sociedade brasileira absorveu e absorve a contracultura, os artistas que não se rendem ao status quo – ou mesmo como o baiano fazia ao não se sentir um cineasta dessa província brasileira, colocando suas ideias e imagens em constante atrito, dialogando com o mundo.
Mas o uso do cinema de arquivo, o resgate dos frames de Glauber sambando entre determinados takes em Idade da Terra (o filme mais mencionado e visto, até pela aproximação temporal, em Antena da Raça) ou o majestoso ensaio-gravação onde ele dirige o psicanalista Eduardo Mascarenhas enquanto esse tenta formular um pensamento – é ouro puro. Todos os episódios do programa estão depositados na Cinemateca Brasileira em São Paulo, uma cartela preta informa. Mas o que é também desumano e covarde é que essa instituição fundamental para a memória e permanência da nossa cinematografia está desmantelada agora.
O irmão de Paloma, Eryk Rocha, já tinha feito uma obra prima dentro desse subgênero documental ao costurar, no incrível trabalho de direção e edição, a onda cinemanovista aos momentos mais emblemáticos da história desse país até então em Cinema Novo. Dele também é um ensaio sobre Glauber, Rocha Que Voa, que traz o cinema novo em paridade estética e politica com o cine revolucionário cubano, a partir da premissa de que nenhuma revolução acontece isoladamente.
Antena da Raça não é nenhuma revolução cinematográfica ou mesmo um ensaio emocionante, como os dois documentários citados mas é valoroso por reafirmar os preceitos de Glauber Rocha – para quem Frankenstein é Drácula e a nossa cultura é macumba, não ópera -, não só dá estetyka da fome mas de saídas possíveis desse momento pavoroso. Paloma e Abramo se detém em trechos do Abertura com a participação do filósofo, já falecido, Luiz Carlos Maciel, quem, segundo Glauber, é o intelectual mais relevante do país e com quem estaria fundando um partido ideológicos e não político. Para que “reacendamos o fogo das paixões revolucionárias” eles dois dão a letra: “Teto, roupa e comida para todos. Corpos livres, pessoas livres, tudo livre.” Esse é o antídoto, “o núcleo fundamental do ser humano é o que nos cabe defender” Maciel completa, lendo seu texto, e Glauber fala off câmera que parecem ideias utópicas, ingênuas, românticas mas que são vitais para combater o medo da imaginação, “os não identificados” desejos de todas as classes.
Se não é tão simples traduzir a iconografia glauberiana, com tantos símbolos, sintagmas, tons colericos, proféticos, entre mitos profanos e religiosos dos nossos costumes, cultura e ancestralidade seria menos custoso senti-la. Como quando Paloma e Abramo cruzam cenas de Bolsonaro e do ardiloso Porfírio Dias (Paulo Autran); somos todos um pouco Paulo Martins (Jardel Filho) não aguentando mais e disparando na estrada para fugir de uma realidade tão vil. E lá está a polícia fascista, nos caçando ontem e hoje. Nesse hoje, nessa era Bolsonaro, onde os neopentecostais trocam dinheiro por salvação a compreensão de que o dinheiro não é laico seria preponderante num estado tomado pelo obscurantismo. Entre imagens das passeatas Ele Não, essa sensação perene se fortalece. Ouvindo “tudo soa, tudo voa” Paloma filma a si mesma, em Brasília, com o bode sagrado e tão importante na cartografia humana desse país. Tão brasileiro, calejado e simbólico. Heróico. Como Castro Alves, Cristo Pecador, Cristo Revolucionário, Cristo Negro e Glauber.
Um grande momento
Glauber, sempre, e seus ditames de como se livrar de um Estado assassino, louco para também censurá-lo na TV