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Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial

Álbum de fotografias coletivo

(Apollo 10 1/2: A Space Age Adventure, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Richard Linklater
  • Roteiro: Richard Linklater
  • Duração: 97 minutos

O cotidiano e sua memória. Richard Linklater nos vende experiências, ao longo de sua carreira, que vende uma ideia do que é importante e do que não é na formação da nossa lembrança-base, aquela que povoará nossos sonhos. Por isso que mesmo quando ele fala sobre o contemporâneo ao que é fílmico, parece já ter a consciência temporal do futuro, quando já não estaremos mais ali, naquele espaço-tempo que não é necessariamente a realidade, mais. Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial, também conhecido como o mais importante lançamento da Netflix em abril, é tão especial quanto a filmografia do cineasta poderia ser, e o é, através dessa disposição dele e de sua equipe em remontar o detalhamento que constitui um passado que também é sonho.

Essa base de uma construção cinematográfica não está apenas aqui, mas remete já a Jovens, Loucos e Rebeldes, passa pela trilogia do Antes…, abraça Waking Life e desemboca em Boyhood, e continua jorrando pelo todo o resto. A memória, aquela de compreensão imediata e palpável, na verdade, não existe. Não passa de um borrão que vai sendo completado ao longo dos tempos por acontecimentos de maior ou menor importância, que podem ter ou não acontecido, exatamente ou não da maneira descrita. Linklater, que deveria ser muito mais celebrado do que já é, não apenas recorta partes dessa memória e reconstitui um tempo, mas enxerta nesse tempo uma memória tão particular que é capaz de reconstruir no espectador um tempo não-vivido, diretamente ou emocionalmente.

Apolo 10 e Meio
Netflix

Faço 44 anos semana que vem. Sou brasileiro. Logo, nem fiz parte geográfica e nem tenho idade para ter acompanhado a era de ouro da corrida espacial motivada por estadunidenses e russos nos anos 60 e 70, mas essa é a paixão de Linklater – teletransportar o espectador. Partindo de qualquer idade e origem, para um momento específico que ele sabe que não volta mais, mas cujo aprimoramento da imaginação é capaz de recriar, ou ainda melhor, manufaturar da maneira que bem entender, é que sua cartografia memorialista é feita. Seria fácil dizer que esse é o maior bem de qualquer grande cineasta, nos imbuir da energia e atmosfera do que quer que ele faça, mas aqui temos um homem que consegue verdadeiramente um fenômeno de tornar singular tempos e sentimentos que não pertencem a quem os assiste, e ainda assim, com empatia, os torná-los testemunhas-oculares.

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Mais que isso. Você não sente que esteve ao lado de Jesse e Celine pelos últimos 25 anos? Não há uma familiaridade com a infância e a juventude de Mason, seus pais, sua irmã e sua vida medíocre e fabulosa? Em seus melhores momentos, Linklater remonta um álbum de fotografias muito particular, divide com seu público e nos insere em imagens que não são nossas, nos servindo de uma realidade tão palpável quanto mágica, por ser tão banal. Em Apollo 10 e Meio, ele disseca durante a metade da produção em como estava a cena, cultural e moral, da classe média norte-americana em 1969, e tão ficção científica quanto a segunda parte, nos faz parte integrante de uma realidade que nunca será nossa, em qualquer registro. Porque aquilo é essencialmente a família de Stan, e não a nossa, e não a de mais ninguém.

Apolo 10 e Meio
Netflix

Ainda assim, estamos lá e sim, vivemos com eles, por pouco mais de uma hora e meia, e sentimos uma fatia daquela experiência, reconhecendo o que, em tese, é a revolução propriamente dita. Porque ela existe todos os dias, e não parou há 50 anos atrás. Porque a televisão continua proporcionando inovações que estão tirando público do cinema (olha a ironia “netflixiana” aí) – que cena marcante é essa, quando lembramos que eles também tiveram seus Game of Thrones, Succession, The Crown, Breaking Bad, Ted Lasso e tantos outros. Porque o cinema, também ele, sobreviverá com suas novas tecnologias, com seu encanto eterno que vai do fantástico ao espetáculo. Porque a música engloba The Monkees mas também Joni Mitchell, e que um dia trará BTS e também Florence Welsh. Porque os hábitos alimentares… ah, esses mudaram bem menos.

Embora não seja alienado (e muito menos transcreva uma sociedade alienadora), Apollo 10 e Meio ultrapassa talvez rápido demais por temas menos agridoces – o propósito da guerra, o racismo verdadeiro naquela fatia social, a política em seu menor e maior esquadro – mas não deixa de abordar essas questões, talvez da mesma forma como aquela família, que era e é reflexo de tantas outras, se porta diante desses temas, e de como sempre teremos dentro desses mesmos núcleos sementes evolutivas. É a forma como Linklater encara a perda da inocência, que de maneira gradual sai da magia e das frivolidades da infância, para um caminho sem volta; só se perde a inocência uma vez, e não há retorno para essa perda.

Um grande momento
Vovó paranoica

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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