Crítica | CinemaDestaque

Passagens

Apontando o dedo

(Passages, FRA, ALE, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Ira Sachs
  • Roteiro: Mauricio Zacharias, Ira Sachs
  • Elenco: Franz Rogowski, Ben Whishaw, Adèle Exarchopoulos, Erwan Kepoa Falé, Arcadi Radeff, Léa Boublil, Théo Cholbi
  • Duração: 91 minutos

Um set, um diretor afetado… e nocivo. Não demora para que se entenda a personalidade de Tomas o protagonista de Passagens, novo filme de Ira Sachs. Roteirizado por ele e seu parceiro de longa data, o brasileiro Mauricio Zacharias, a produção ainda é baseada na palavra e está preocupada em olhar para seus personagens e a relação entre eles. Se tem como foco o tema habitual, diferente dos longas anteriores da dupla, este é marcado pela intensidade, confusão e crueldade das relações. Em um mergulho no triângulo formado por Tomas, vivido por um irreconhecível Franz Rogowski (Em Trânsito), chamativamente leonino em seus croppeds; o submisso Martin, Ben Whishaw (Entre Mulheres) e “a novidade” Agathe (Os Cinco Diabos), explora sentimentos como o narcisismo e a codependência.

O modo como Sachs molda o ritmo a depender do personagem que está em cena e da relação que se estabelece com aquele que está no centro de tudo é preciso e funciona muito bem para demonstrar as personalidades de cada um. A crueldade egóica do protagonista é captada e destacada em detalhes, gestos, movimentos do corpo e posição em cena, num trabalho muito afinado entre o diretor e o ator. E há ainda a palavra. “Você devia ficar feliz por mim”, diz Tomas a Martin para causar apenas mais uma ferida depois de tantas não vistas, mas contadas antes de outras que poderão ser testemunhadas. E,  depois, lá está ele mais uma vez sem deixar que Agathe siga a sua vida entre tantas crueldades e interferências também. É tudo horrível e doentio, construído de maneira natural e direta.

O relacionamento a três vai se estabelecendo através da dor e da permissividade das duas pessoas que não sabem como sair da situação. O roteiro e Sachs entregam isso em Passagens e deixam ao público a possibilidade de interpretar aquilo que vê, sentindo cada novo movimento, não compreendendo as atitudes e se indignado com a aceitação e a inação. É essa a intenção, explicitar para provocar o entendimento, afinal de contas, o diretor é alguém que sempre buscou as relações humanas, mesmo que elas não fossem tão doentias.

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Do primeiro encontro com Agathe, sua sensação de orgulho pela conquista e a dependência que se cria; da desolação de Martin e seu cansaço por ter alguém que não o respeita; do hedonismo de Tomas, seu narcisismo que não consegue enxergar ninguém além de si mesmo, nem pensar em nada além da própria satisfação, os caminhos trilhados são confusos e nem sempre chegam da forma mais óbvia e esperada. E há toda um universo externo que observa e tenta interferir, sem muito sucesso, trazendo o filme para perto demais. 

Porque no retrato que Passagens faz dessas pessoas quebradas, o vínculo que os espectadores cria com cada uma delas é inegável. Inclusive com aquele protagonista, especialmente por ele ser alguém tão identificável, e há algo de muito terrível nisso. Não é apenas uma questão de observação, mas de vivência, de reconhecimento de ações e traços de personalidade que perturbam quem assiste ao filme. Alguém está ou esteve onde não deveria, vive ou viveu algo que não precisava ou merecia. É a vida, a verdade de muitas relações, e ela é horrível demais. 

Um grande momento
A conversa com a mãe de Agathe

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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