Crítica | Festival

As Bruxas do Oriente

Uma lúdica homenagem

(Les Sorcières de l'Orient, FRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Julien Faraut
  • Roteiro: Julien Faraut
  • Duração: 100 minutos

Era uma vez oito mulheres que faziam feitiços em quadra. Elas mergulhavam, rolavam, cortavam e por 258 partidas foram imbatíveis. Invencíveis. Um time surreal, formado por operárias tecelãs que de dia trabalhavam e de noite (até o novo dia) treinavam na fábrica. E o documentarista Julien Faraut foi enfeitiçado após assistir a uma exibição delas num filme 16mm, sendo que 10 anos depois de as ter visto, conseguiu remontar a fábula e penetrar no mundo das bruxas do Oriente (Toyo No Majo).

O apelido dado pela imprensa mundial nos anos 60 àquele time feminino assombroso gerou uma febre de ouro no Japão, que logo as veria se tornar as primeiras campeãs olímpicas da história. Animes de esportes logo se tornariam muito populares como Haikyu!!, inicialmente lançado como manga e ainda hoje publicado nesse formato, totalmente inspirado no vôlei.

E a equipe mais mitológica que o Japão já teve no esporte, de seis titulares e três substitutas, foi o time feminino da fábrica têxtil Nichibo Kayzuka. No documentário que estará e exibição na Mostra, as operárias-atletas são septuagenárias e octogenárias que se reúnem alegremente para relembrar as dores e glórias da época em que brilharam nas quadras, tendo seus depoimentos ilustrados de maneira onírica por Faraut e sua equipe, num trabalho estupendo, para além da direção, de fotografia e montagem.

Apoie o Cenas
As Bruxas do Oriente
Cortesia Mostra SP

A música eletrônica de Jason Lytle e K-Raw é orgânica na sobreposição de sentidos em As Bruxas de Oriente, cujo tom celebrativo é um caminho acertado para tratar do feito e do legado das campeãs olímpicas, as comandadas de Hirofumi Daimatsu, que levou todo o crédito pelo êxito. O documentarista não deixa essa questão de lado quando, por meio de offs das campeãs olímpicas, reconstituiu aquela época, sobrepondo o trabalho na fábrica aos treinos massacrantes. A máquina de tecer se fundindo as cortadas na bola que o técnico e seus assistentes davam para as jogadoras pegarem se atirando ao chão.

Enquanto elas treinavam exaustivamente o “truque” mágico denominado kaiten reshiibu, tática que consiste em recepcionar o saque adversário com rolamento, ou seja, mergulhar para rebater a bola da maneira mais curva e baixa, dificultando contra ataque e também acentuando o impacto ao levantar para as atacantes golpearem a bola num voo rasante, imagens de outro manga, talvez o primeiro dedicado ao vôlei, Attack número 1 reconstituíam a jornada. Os embates com as outras seleções no campeonato mundial na Rússia, a final épica contra as soviéticas nos jogos olímpicos em casa…

Fatos e fábulas vão construindo uma narrativa inebriante em As Bruxas do Oriente. Em meio a um almoço, elas se reencontram e recontam as partidas, o clima e tudo que se sucedia. E os jogos de 1964 tiveram um impacto profundo nos japoneses. Afinal de contas, marcava também um momento em que os EUA tinha deixado a pouco tempo de estar presente no país enquanto uma força de ocupação, se tornando um momento de provar pro mundo que a nação se reconstruiu mesmo depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki e a derrota na segunda guerra mundial. E as heroínas brilham: Kinuko Tanida, Masae Kasai, Emiko Miyamoto, Yoshiko Matsumura, Yuriko Handa, Sata Isobe, Katsumi Matsumura, Yoko Shinozaki, Setsuko Sasaki, Yuko Fujimoto, Masako Kondo e Ayano Shibuki parecem frágeis vovós mas suas contrapartes jovens são mulheres maravilhas.

As Bruxas do Oriente encanta por ser um documentário inventivo que recria, por meio de uma montagem engenhosa, uma direção energética e uma trilha absolutamente climática, uma jornada heroica e muito humana dessas mulheres. Imagens de arquivo remasterizadas, incrivelmente trabalhadas com a trilha incidental em dramatizações uma que as mostram jogando, flutuando, voando em direção à rede. Cavalo, Achako, Sonhadora, Baiacu, Chabin, Chitiro e Pai eram mulheres deusas, feiticeiras cujos apelidos ilustravam suas características míticas -inclusive ao mencionar cada uma surgia uma cartela com sua posição e principais habilidades.

Daimatsu também tinha um apelido – era chamado de demônio, por conta da rigidez e os treinos exaustivos aos quais submetia suas atletas. Ex-militar do exército imperial japonês, ele é lembrado com respeito mas sem muito carinho pelas atletas. Handa lembra das noites em claro, dos regimes e se ri que hoje pode ensinar mamasan volei – uma partida popular no Japão onde mulheres que já são até mães ou mesmo avós passam a praticar o esporte como um hobby.

As Bruxas do Oriente
Cortesia Mostra SP

É bonito o senso de irmandade entre elas que As Bruxas do Oriente captura. Relembram as habilidades na quadra e fora delas, como a doçura de Isobe e o sorriso de Kasai – ambas já falecidas – e Kinuko inclusive conversa com a filha da ex-companheira Miyamoto ao telefone. Ela esteve adoentada e por isso não foi ao almoço.

Podendo facilmente ser uma série de cinco episódios, enxergando o trajeto pela perspectiva de cada uma das bruxas do Oriente é um deleite para quem ama o esporte ou apenas aprecia boas histórias, ainda dando uma lição preciosa sobre como as mulheres são magicamente revolucionárias. Já no trecho final do documentário, elas, resilientes, resolveram deixar os planos familiares e a aposentadoria de lado (algumas tinham acabado de se casar), já campeões do mundo para servir o país nos jogos após a notícia de que o vôlei entraria no programa como modalidade olímpica.

Faraut tem vindo a criar uma filmografia focada no modo como imagens de arquivo de acontecimentos do esporte podem ser modeladas para se constituir como conteúdo imagético. Um exemplo anterior é John McEnroe: In the Realm of the Perfection, que se detém a analisar os aspectos múltiplos do folclórico tenista e a própria singeleza da bolinha de tênis quando entra em contato com a raquete e com o solo, o bale cinemático que se modula e os humores. A quadra de vôlei manifesta em As Bruxas do Oriente sombras das atletas-feiticeiras, que, bruxelantes, invadem a imagem em camadas de sonhos, se fundindo em nuvens. Intrinsecamente em seus documentários Faraut vai modulando a plasticidade das reconstituições com as sequências com seus personagens-atletas hoje e fabulações sobre os conflitos que atravessaram, num xadrez sensorial e diegético muito imersivo, suportado pela fotografia de Yutaka Yamazaki.

Um documentário informático, pós-moderno e emocionante, que ainda fabrica por meio de uma antiga animação japonesa a ideia de que todas as mulheres são bruxas, da mais singela geisha às atletas mais brilhantes do vôlei. São fruto da imaginação e do poder feminino que é latente em todas.

Um grande momento
As bolas atiradas no treino enquanto o algodão é tecido

[45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Curte as coberturas do Cenas? Apoie o site!

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo