Crítica | Outras metragens

Confluências

Aquilo que fica

O rio corre sem fronteira, mistura águas e histórias. No encontro, tudo se confunde e tudo permanece. Confluências, de Dácia Ibiapina, nasce desse gesto: fazer do cinema passagem e abrir espaço para a voz quilombola que insiste em atravessar séculos de apagamento.

Entre essas vozes, a de Nêgo Bispo se impõe como memória e invenção. Ele não fala apenas de si, fala de um povo inteiro. Cada palavra é corpo e cada pausa, resistência. É como se sua voz carregasse no timbre a lembrança dos que vieram antes e a força dos que ainda estão por vir. O filme se deixa conduzir por esse ritmo e não tenta moldá-lo a categorias ou teses.

A câmera observa, mas não captura. Ela acompanha o gesto, o olhar, a cadência. Há escuta no enquadramento, há respeito no tempo da fala. O cinema aqui não se coloca como espelho, mas como roda, espaço partilhado. O espectador é chamado não a ver, mas a estar junto, a se deixar tocar pela pedagogia quilombola que se constrói na oralidade.

Nêgo Bispo é, ao mesmo tempo, filósofo e griô. Cada frase dele parece conter um mundo inteiro, e não há pressa em encerrar esse mundo. A sabedoria que compartilha não vem dos livros, vem da terra, da prática, da experiência coletiva. Sua fala é ponte entre passado e presente, mas também abertura para o futuro.

Confluências não é apenas sobre um personagem. É sobre território. É sobre quilombo. É sobre a força de uma vida que insiste em permanecer apesar das tentativas constantes de apagamento. A câmera registra os espaços, os encontros e os corpos em movimento. Tudo ali é política e, ao mesmo tempo, poesia.

Há, no filme, uma certa recusa à linearidade. O tempo se alonga, se dobra, retorna. Como o rio, nunca segue em linha reta. E é nesse fluxo, nessa confluência, que a narrativa encontra sentido, não se fechando em explicações, mas abrindo passagens. O cinema se torna continuidade, não conclusão.

Mais do que a presença de Nêgo Bispo, o que ecoa é a certeza de que suas palavras não se encerram na tela. Elas seguem, reverberam, se enraízam em quem as escuta. Confluências é menos documento que encontro; menos registro que ritual. Ao sair da sessão, a cadência daquela voz que se recusa a ser calada permanece.

Um grande momento
Aquela música

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
Mais novo
Mais antigo Mais votados
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo