(Até o Fim, BRA, 2019)
Provavelmente o movimento mais instigante do cinema brasileiro recente, o Universo Cinematográfico Glenda Nicácio e Ary Rosa (UCGNAR) ganha novo capítulo com Até o Fim, que se passa no bar em que Henrique (Aldri Anunciação) canta “Clube da Esquina II” em Ilha, filme que por sua vez é uma resposta à determinada recepção crítica de Café com Canela. Após a dedicação à masculinidade, os cineastas recuperam o protagonismo feminino do longa-metragem de estreia, desta vez de forma absoluta. Pautas características do UCGNAR, como família, sexualidade, criação artística, trauma, religião, afeto e isolamento, mais uma vez fazem parte do encontro – e uso encontro por crer ser um bom termo para dar conta da comunhão que propiciam os títulos da dupla, três dramas com percursos de (re)descobertas, que têm como âmago a aproximação de corpos pretos não limitada à tela de projeção, pois possibilita o reconhecimento do espectador tão negligenciado.
Pois bem, as anfitriãs desta festa da raça são Geralda (Wal Diaz), Rose (Arlete Dias), Bel (Maíra Azevedo) e Vilmar (Jenny Muller): a abandonada que carrega muita mágoa e dor, a fofoqueira afobada, a artista bem-sucedida, a nova geração que quebra todos os paradigmas. Passado, presente e futuro; sua mãe, você, sua irmã, sua tia, sua vizinha. Todas performam, todas fabulam, todas duvidam – “quanta besteira, inventiva como sempre” – e a superpoderosa oscarizada que tem o cinema como ofício ainda se encarrega de proporcionar plot twist.
O “Força, mulher!” vociferado pela personagem de Arlete Dias em Ilha ecoa aqui de modo muito mais contundente, ainda que subentendido, pois Até o Fim mostra que mulheres pretas são forças criativas e capazes de carregar exclusivamente um longa-metragem no país que historicamente conta menos de cinco lançamentos em circuito comercial de produções dirigidas por negras. Tal carga altamente emocional é um petardo infalível no carente coração da família preta brasileira e Glenda/Ary comprovam novamente a habilidade em representar aconchego, conferindo ao drama forte apelo popular.
Além de prática, a simplicidade da premissa revela-se mordaz, oferecendo uma noite inteira na companhia de pessoas incríveis de forma a transverter completamente o significado de one-night stand, modelo de encontro casual que está intimamente relacionado à solidão da mulher negra. Glenda e Ary, no entanto, insistem em determinadas experimentações que se confundem com necessidade de reafirmação do domínio técnico, o que por vezes acaba jogando contra o filme ao chamar mais atenção do que o conteúdo.
A “câmera bebum” na frenética movimentação mão-copo de cerveja-rosto-interlocutora é exemplo disso, destaque à teatralização e descontração que daria certo em determinada medida, mas se esvazia de sentido pela repetição. É uma questão também a reiteração de forma geral, que coloca nas bocas das personagens as mesmas informações três, quatro vezes, e reprisa situações. Ou os diretores não confiam o bastante na capacidade de compreensão do público ou no próprio cinema, o que quebra qualquer conexão. Piadas a princípio divertidas tornam-se irritantes pelo cansaço e sequências pensadas para abalar não chegam onde deveriam – uma delas tão colada em outra igualmente pesada que não há sequer tempo e espaço para reverberar.
Tomando as palavras de Geralda, “o escuro protege do ridículo” e esta fabulação negra sobre terríveis dores nada incomuns, idealização de futuro e situação de presente, mesmo com toda sua irregularidade e desmedida tem mais impacto em um plano banal que vai da risadaria à briga do que o mais “perfeitinho” milésimo filmeco egocêntrico do homem branco classe média alta. Que mais ratos pereçam e a câmera-quinquilharia acostumada a um mesmo estilo de registros familiares encontre o brilho de outros olhares.
Um Grande Momento:
Balanço sobre o que o futuro poderia ter sido.