Crítica | Outras metragens

I Died in Irpin

A perda de si

(I Died in Irpin, CZE, SVK, UKR, 2024)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Anastasiia Falileieva
  • Roteiro: Anastasiia Falileieva
  • Duração: 11 minutos

A animação I Died in Irpin, de Anastasiia Falileieva, fala sobre o cárcere do lar. O que se vê não é um lar que protege, mas um lar que prende e amplifica o ruído do medo quando o mundo lá fora entrou em erupção. Em poucos minutos, o curta revela a angústia de um corpo que não reconhece mais seu território; e, em meio a guerra, a casa que seria o refúgio possível se enche de som, sombra e fragmentos de memória.

A sensação de deslocamento é contínua. A protagonista, em fuga com seu namorado de Kiev para Irpin, atravessa ruas desertas, paredes que trepidam e abismos invisíveis. Conforme a invasão avança, o que antes parecia abrigo torna-se prisão mental. A identidade se dilui. Quem sou eu se meus desejos, minhas lembranças e meus lugares se apagaram? I Died in Irpin traduz a perda de si com traços sombrios que misturam carvão, riscos borrados, textura suja, contornos instáveis. A animação, em sua materialidade precária, sugere fadiga, da guerra, da espera, do viver com as marcas do desmoronamento.

Nesse território de incerteza, a sanidade falha. Os relacionamentos se tensionam, o amor resiste como gesto frágil que pode romper. A protagonista tenta segurar a mão do parceiro, mas o olhar que antes entregava segurança perde o sentido e a coerência. A guerra dissolve contratos íntimos. Se o “eu” vacila, o “nós” se perde, e cada cena arrasta consigo a dúvida do que resta. É impossível permanecer inteiro em meio ao caos.

O curta também alcança o não pertencimento. Lugares e pessoas perdem a sua conotação dede identificação; não são estranhos, mas tampouco próximos ou íntimos. Seres se tornam estranhos; as ruas, territórios hostis, e os cômodos, espaços de vigilância. A fuga, quando chega, também parece ausente, pois não há destino que acolha. Essa condição de desajuste – quando a casa não está em lugar algum e nem mesmo é possível reconhecer-se – é o sintoma de quem vive sob bombardeio emocional e material.

Fiel aos sentimentos de uma história real, não há promessa de retorno em I Died in Irpin. O curta procura a fraqueza, a fissura e o vazio. Escavando o que ficou entre os escombros da guerra, não é um filme que pretende fechar feridas. Em seu gesto, exige que olhemos para longe das bombas, para o silêncio, para a memória, para o lugar que perdemos e para a vida que se foi, mesmo que não se tenha morrido.

Um grande momento
Sentindo o abandono

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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