Crítica | Catálogo

Batem à Porta

Alienação e alucinação

(Knock at the Cabin, EUA, CHI, 2023)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: M. Night Shyamalan
  • Roteiro: M. Night Shyamalan, Steve Desmond, Michael Sherman
  • Elenco: Dave Bautista, Jonathan Groff, Ben Aldridge, Nikki Amuka-Bird, Rupert Grint, Abby Quinn, Kristen Cui
  • Duração: 100 minutos

Era 2015, o pesquisador Aviv Ovadya avisou que estávamos perto do colapso. Em meio a campanhas cada vez mais agressivas de desinformação, a realidade ia tornando-se inacessível, deixando de fazer sentido. As pessoas perderam o contato com o lógico e passaram a se fechar em universos paralelos, guiados por teorias absurdas desenvolvidas através de dados criados, que se retroalimentam com a própria alucinação. Ninguém ligou. O resultado se viu em todas as partes do mundo, ressoa alto e ainda se espalha, em velocidade impressionante, pelas redes sociais, seus aplicativos criptografados, bots e perfis falsos.

Natural e, esperado até, que o cineasta que traz a fé como tema recorrente em suas obras chegasse de alguma maneira até a questão, dado o estado das coisas. E cá estamos em Batem à Porta, longa inspirado no livro de Paul Tremblay “O Chalé no Fim do Mundo”, que conta a história de um casal de pais e sua fofa filha, feitos reféns por quatro pessoas de personalidades diferentes que se encontraram por acaso e agora estão ali para cumprir um propósito nobre, o qual não revelarei para não comprometer a experiência daqueles que ainda não assistiram ao filme. Shyamalan está em todos os detalhes do texto, nas figuras que chegam e nas que já estavam, nas motivações, justificativas, na metáfora e, inclusive, na fábula fantástica que o impede de seguir adiante, mais uma vez, mas voltarei nisso mais tarde. 

Batem à Porta
Universal Studios

É mesmo em outros quesitos que o diretor se destaca. Não há como negar sua habilidade na construção de uma atmosfera opressiva, mais ainda, na recriação, por meio de planos sufocantes e na duplicação de ambientes destacados, do isolamento que leva ao caos interior de seus personagens. Shyamalan nos aproxima demais de todos e depois nos afasta abruptamente, e alternando entre polidez e tensão, não só na estética, mas na concepção das personas – a escolha de Dave Bautista, que mais uma vez mostra seu diferencial no universo dos brutamontes, e de Rupert Grim, ainda muito associado com seu personagem mais famoso, é genial –, nos confunde. Com referências óbvias ao texto mais lido do mundo, inclusive em elementos literais, ou aprisionados e observados, ou livres e observadores,  deixa claro o que quer dizer. E é bonito como ele transforma isso em imagem, som e medo. 

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Em Batem à Porta há equilíbrio entre a degeneração e a elevação por boa parte do tempo. Terreno e metafísico entram em embate e isso se concretiza com a violência às vezes não tão gráfica, mas presumível, e a trilha em coros de Herdís Stefánsdóttir. Shyamalan, embora nem sempre mantenha a escolha tão explícita, aproxima o espectador de uma personagem, aquela  que ainda não foi capaz de escolher caminhos e ainda não sabe julgar. Estamos no lugar dela. E ele joga com aquilo que mostra e o que será mais eficiente fora do plano, acertando sempre. Porém, mesmo com a dinâmica bem estabelecida e todos os meios para aprofundar sua história com o que tem ali, naquele espaço restrito, o diretor não resiste à facilidade dos flashbacks, que fatiam a narrativa e a empobrecem, não apenas na questão do ritmo.

Batem à Porta
Universal Studios

Volto aqui agora à questão contextual. Em sua fantasia fatalista, o diretor faz um dos retratos mais interessantes da alienação e da desinformação. Batem à Porta, que em seus diálogos não deixa de fazer alusões diretas ao que chegará alegoricamente, traz a questão do grupo enquanto legitimador, enquanto um espaço onde as certezas de teorias se constrói em um estado de ilusão coletivo. Leonard, Sabrina, Ardiane e Redmond são pessoas comuns, com suas inseguranças, tomadas por uma crença, uma convicção e o sentimento de importância que o leva ao extremo. O isolamento, a exposição controlada das informação, ou mesmo a ausência delas, aprofundam sua “verdade” e tornam fácil propagá-la. Porém, há sempre um final de Shyamalan para boicotar tudo o que Shayamalan fez. Primeiro por romper o jogo narrativo estabelecido até então e nos afastar de Wen (o que talvez venha da adaptação, e quem leu o livro vai entender o porquê), depois por um prolongamento desnecessário, onde a dúvida ganha força demais sem precisar e há aquela necessidade de mostrar o que já se infere.

Mas é isso, até chegar até aí, muita coisa interessante foi vista, com um alto potencial de associação e a elaboração que comprova que o diretor de Tempo e A Dama na Água, por mais controverso que seja, é alguém para quem não podemos parar de olhar. Mesmo com as pegadinhas e finais esdrúxulos. Batem à Porta, especificamente, fala alto a um presente descompassado e pavoroso, assim como tantos outros filmes feitos atualmente sobre a mesma coisa, mas consegue fazê-lo de um jeito diferente e, sim, mais assustador. 

Um grande momento
Conhecendo Leonard

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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