“Devido ao trânsito em Berlim”, assim justificativa a chefe do departamento de imprensa do festival à imprensa que a coletiva de apresentação do Júri Internacional teria um atraso de dez minutos.
Logo de início, a moderadora Paz Lázaro (que também integra a comissão de seleção dos filmes da mostra competitiva) concedeu a palavra ao presidente. No preâmbulo do festival, a escolha de Irons para presidir o Júri Internacional foi criticada severamente pela imprensa alemã.
Lendo uma declaração no papel, ele “ajustou” suas posições sobre o que ele na manhã de quinta-feira (20) classificou de “Direitos Humanos”:
1. O casamento homoafetivo;
2. O direito ao aborto;
3. Prevenção contra o assédio sexual sofrido por mulheres no âmbito privado e no local de trabalho.
O plano do ator britânico era colocar um ponto final no assunto e focar na “paixão pelos filmes”. Assunto encerrado? Claro que não! Mas a Berlinale, em sua desenfreada dinâmica não tem tempo para analisar o tema. Irons, juntamente com a direção do festival optou pela velha estratégia: a defesa e o melhor ataque.
A coletiva teve perguntas pueris sobre quais filmes teriam injetado a paixão pelo cinema nos membros, que citaram filmes como Bambi, E.T., o Extraterrestre, Cantando na Chuva. Irons, por sua vez, citou Charlie Chaplin, ”a paixão de seus filmes”. O citar de um conterrâneo pode ser uma coincidência, mas eu acho que não.
Júri de Luxe
Certamente a constelação dos membros do Júri Internacional na edição 2020 é a melhor dos últimos anos.
O diretor pernambucano, Kleber Mendonça Filho (O Som ao Redor, Aquarius, Bacurau), era o menos à vontade na roda do júri. Com paletó cinza escuro com uma manga curta demais não “só” devido ao frio berlinense, ele colocou o celular em posição para filmar a plateia, cruzou os braços durante grande parte da coletiva e lançava o olhar numa mistura de desconfiado e desconfortável. Não que esse olhar fosse novidade para mim, que já conhecia o então crítico de cinema, quando dividíamos, com outros jornalistas. o espaço da sala de computadores do festival.
Alinhavei a minha pergunta, ressaltando a “robusta presença do cinema brasileiro na atual edição da Berlinale e tematizei o “momento dramático” em que o Brasil vive: Estrangulamento das artes, criminalização da classe artística e tentáculos da censura por todos os lados. Indaguei como esta sendo para ele, como Persona Non Grata número 1 do atual governo dando o exemplo da reivindicação da Ancine dos milhões da produção de O Som ao Redor. Ao iniciar a resposta, ele cobrou de mim um comentário de boas-vindas ao júri, corrigiu o número de filmes brasileiros que ele diz serem, ao todo, 19, e alegou em tom lacônico: “Nos últimos tempos eu estive na estrada com Bacurau e vou continuar fazendo filmes e dando a minha opinião”. Ainda acrescentou que o “cinema brasileiro vive seu melhor momento”.
Entendível, até um certo ponto, Kleber, recém-chegado, não querer se tornar o protagonista da coletiva, mas a combinação dele ser, de um lado, o cineasta de maior expressividade do cinema brasileiro e o mais odiado pelo atual (des)governo, torna uma obrigação ele alertar a comunidade internacional para o estrangulamento e criminalização de todo um setor. Kleber tinha à sua frente toda a imprensa internacional e a melhor chance possível de contra-atacar.
José Padilha fez melhor em 2008, ao concorrer com Tropa de Elite, Wagner Moura e Bruno Gagliasso fizeram muito melhor em 2019, ao apresentar Marighella na mostra competitiva sem concorrer aos Ursos. Wagner descreveu meticulosamente os mecanismos fascistas do então, recém-empossado (des)governo: falou da matança de jovens negrXs da periferia, do feminicídio e da repressão. Gagliasso, com olhos lacrimejados, falou do “orgulho” de poder falar para seus filhos, que fez um filme com a temática de Marighella, que só irá estrear no Brasil em 14 de maio devido à mecanismos de censura em forma de uber-burocracia estipulados pela ANCINE.
Até eu me retirar da coletiva, Kleber ficara devendo uma posicionamento claro, algo estranho para o cineasta que dirigiu Bacurau, sinônimo de resistência. Criticar a política pública no festival do Rio, de Brasília, de Recife e de Gramado, não bastava. O momento é crucial para alertar e alarmar a comunidade internacional sobre a opressão no setor. Ele o fez, já no fim da coletiva, quando denunciou que o governo federal sabota o setor no Brasil, depois de citar que o bom momento vivido pelo cinema brasileiro hoje é resultado de anos de ações e incentivos, agora abandonados. Ele ainda destacou o processo de paralisação da produção cinematográfica brasileira.
Passado tenebroso
É tudo bem paradoxal: no aniversário em que comemora 70 anos, a Berlinale precisa fazer uma faxina em sua identidade, já que foi veiculado, no final de janeiro, que o seu fundador e diretor durante anos ocupava cargo de confiança no aparato cinematográfico do Terceiro Reich, minuciosamente alinhavado pelo ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. Pairava também sob a abertura do festival, o ataque terrorista de extrema-direita no dia 19, na cidade de Hanau, que custou a vida de 10 pessoas.
Como se essa nuvem cinza do passado não bastasse, o fascismo de direita vem deixando a Alemanha em estado de estupefação. O apresentador da noite de gala teve uma tarefa árdua e mesmo que não fosse: ele foi uma péssima escolha. Suas tentativas de ser engraçado quando ninguém no cinema se permitia rir, resultaram em doses cavalares de vergonha alheia. Perto de mim, o diretor de família turca, mas nascido na cidade de Hamburgo, e vencedor do Urso de Ouro com Contra a Parede em 2004, Fatih Akin, tentava manter a postura, mas não teria sido preciso conhecê-lo bem, para perceber, nitidamente, seu constrangimento frente a tal performance de um ator que já não convence em seus trabalhos em crimes policiais na TV.
Sob o impacto do ataque terrorista, no meio da cerimônia, alguém da plateia gritou: “Um minuto de silêncio por Hanau!”, deixando o apresentador ainda mais desconcertado do que já estava. Mas o minuto de silêncio foi feito pouco tempo depois, pelo diretor e pela CEO do festival, exibindo ainda mais falhas no alinhavar do protocolo da cerimônia.
Ainda na noite de gala, foi o presidente Jeremy Irons que alertou para a necessidade do cinema em países “oprimidos”. Entre outros nomes, ele mencionou o Brasil. Isso, ainda é muito pouco. Suceder Hector Babenco no júri do festival mais político do mundo traz uma responsabilidade por si, Também foi o próprio Irons que, na coletiva de apresentação, ressaltou a importância do artista tomar posição.
Em um contexto hiper complexo, falam os filmes e diretorXs brasileirXs que estarão na capital. Na noite de sexta-feira (21) a equipe de Cidade Pássaro em peso, durante a Q&A, deu o recado como deve ser: não em doses homeopáticas, mas como um trovão linguístico-político, sem perder a ternura. A ativista Petra Ferreira também esteve no palco do CinemaX 6 do complexo de salas de cinema CinemaX em Berlim. Foi com a galera do filme dirigido por Matias Mariani que os berlinenses e visitantes de todo o mundo tiveram um depoimento honesto, conciso e de quem conhece o dia a dia de teimar e resistir na negritude. Depois do discurso emperrado de Kléber, o diálogo com a galera do Cidade Pássaro foi um alívio de uma noite de verão depois de uma manhã sombria e frustrante.
No sábado (22) ás 12:30 horas, horário local, houve a estreia do filme Vaga Carne da atriz, produtora e ativista Grace Passô, na mostra Forum Expanded.
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