Crítica | Outras metragens

Boi de Salto

Boi reinventado

A lenda do boi nunca pertenceu a um só corpo. Nasceu do desejo de Catirina por uma língua impossível, ganhou canto, batuque e renasceu em festa. Sem precisar de explicação, sem pedir licença para existir entre fé e invenção. Em Boi de Salto, Tássia Araújo decide vestir essa lenda com outra pele: a do corpo queer. É um gesto corajoso, sobretudo em um país que desconhece seu folclore e trata sua própria cultura popular como fantasia infantil ou relíquia morta. Há mérito no impulso de apresentar o boi a quem nunca o viu viver, mesmo que isso provoque ruídos em quem conhece sua origem.

Ainda assim, é impossível negar a força do. É valioso ver uma diretora nordestina se apropriar de um mito popular para reinscrevê-lo com outra urgência. Boi de Salto leva o folclore para o campo da identidade, abre espaço para que novas existências reivindiquem esse lugar de encantamento. Há uma geração que nunca ouviu falar de Catirina, que desconhece o verso da língua e a oferenda do tambor. Para essas pessoas, o filme pode ser porta de entrada e, nisso, sua relevância permanece.

O filme acompanha Abdias, filho do boi, que deseja dançar calçando salto alto. Essa imagem, forte em si, carrega a delicadeza de uma reivindicação, a de existir dentro do que sempre existiu. Mas é justamente aí que o curta provoca sua primeira fissura. Nos terreiros de boi, seja no Maranhão, no Piauí, em Pernambuco ou em todas as suas variações pelos estados do Brasil, o acolhimento é fundamento. Boi é ritual de corpo coletivo, de mistura entre santo e gente, de travessias de gênero que antecedem qualquer discurso contemporâneo. Fazer do boi um lugar de expulsão é criar uma ruptura que não nasce da tradição, mas da leitura contemporânea que precisa de um antagonista para existir.

Araújo demonstra domínio estético. Há intenção na fotografia marcada, cuidado nos quadros que procuram traduzir o conflito de Abdias entre fé e desejo e ousadia no uso das elipses. Mas, na construção narrativa, o filme recorre a uma expressão do cinema queer que já foi símbolo de transgressão e hoje soa como repetição empobrecida, a libertação encenada apenas pela performance. O salto alto, reluzente, vira condutor dramático e não a complexidade de viver entre os cantos, entre o passado e o que ainda não tem nome. Falta escuta aos silêncios, falta nuance ao rito.

O incômodo que fica não invalida a obra. Boi de Salto amplia a conversa, porque se o boi é de todos, também é de quem o reinventa. Mas toda reinvenção precisa lembrar que aquilo que hoje chamamos folclore já foi insurgência. E que antes da performance, havia rito. Antes do salto, havia chão. E esse chão sempre foi de todos, sem distinção.

Um grande momento
Trazendo a lenda

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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1 Comentário
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Tassia
Tassia
03/12/2025 08:53

Muito obrigada pela crítica generosa. Abraços! Tassia Araújo

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