Crítica | Festival

Peixe Abissal

Águas turbulentas

(Peixe Abissal, BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama, Documentário, Experimental
  • Direção: Rafael Saar
  • Roteiro: Rafael Saar
  • Elenco: Luís Capucho, Maurício Lima, Pedro Paz, Teuda Bara, Mary Alentejo, Ney Matogrosso
  • Duração: 110 minutos

Assim como resgatou do underground a dupla Luhli e Lucina em Yorimatâ, Rafael Saar repete o intento esse ano com Luís Capucho, compositor, escritor e cantor, nesse Peixe Abissal. Em ambos os filmes, o retrato tão honesto e pouco dedicado a incursões biográficas tradicionais dão lugar a uma leitura poética de seus personagens, e de posse de elementos esparsos, o diretor contempla suas imagens com o que ele elabora de sensorial em cima dessas obras e seus responsáveis. Como adaptar poesia sobre poesia, o diretor usa a base dessa trajetória para elencar uma visão particular sobre relações familiares, amor na maturidade, algumas doses de carência, e uma liberdade sexual pouco difundida, em cinema ou qualquer outra mídia. 

Na verdade, tudo que vemos em Peixe Abissal é fruto de observação estética rara, de delicadeza ímpar. Encontrar em projetos tão orgânicos como esse uma organização de imagens feita com essa convicção, como se fora aqui a apreensão de uma cartilha poética em forma de fotograma, é uma ideia que Saar empreende com pouca equiparação. O estudo da imagem aqui trafega muitas instâncias, que não são distintas porque se movem umas em direção das outras, promovendo aglutinação. Dessa experiência beirando a lisergia, tantas ferramentas surgem para trafegar nesse aquário para adultos; os peixes não estão apenas indo e vindo, mas se aglomerando em múltiplos afazeres e o processo é contínuo para se alcançar todos os espaços de referência. 

A cartografia emocional disposta em Peixe Abissal vai de encontro ao que compreendemos com o que é produzido imageticamente. Em determinado ponto, precisamos aceitar que não há uma única maneira de leitura, para o filme e para seu protagonista. Se o material biográfico se mistura à ficção delirante que Saar produz, e que se amalgama com as possibilidades documentais, promovendo um encontro com os caminhos da plasticidade na arte, é porque Capucho também permite que esses tentáculos se libertem. A um homem que se permitiu nadar por muitos oceanos diferentes, não caberia um formato estático; seu diretor compreende isso, e peregrina pelos campos possíveis com beleza e espanto, promovendo um encontro onde o desastre é a intenção. 

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São inúmeras formas de capotar dentro de Peixe Abissal, justamente porque todos os sentidos são permitidos e parecem justos. A mãe do protagonista, por exemplo; ela é quem é, mas também é Teuda Bara, e também é música, e também é abstração de linguagem. A sequência da visita à Aparecida do Norte é uma sintomática amostragem dos recursos que o filme lança na direção do espectador – existe o real, existe a ficção, e existe a conversa entre esses dois mundos, que é justamente onde mora o artista, nas bordas entre suas encarnações. O que seguimos fazendo é sorver a montagem arriscada entre os mundos, a cargo de Saar e Luciano Carneiro; a comunicação da sonoridade entre os vãos comunicáveis e as muitas vidas de Capucho mostram que a resposta para os sucessivos mergulhos é permitir-se encharcar de sua multiplicidade. 

Como já dito, tudo isso é próprio a Peixe Abissal por seu personagem central ousou experimentar mais do que uma vida é capaz de abarcar. A comunicação é direta com a costura infinita na narrativa, que revela muito mais do cinema de Rafael Saar (ou de como ele encarna como apropriador poético de linguagens) do que da vida de Luís Capucho, e isso não poderia ser mais acertado. Um homem cuja água é sinônimo de sobrevivência, encontra um diretor que acredita no poder da mesma, sendo devoto de sua Senhora; dessa união nasce uma obra que se compreende muito mais pela subjetividade do que pela objetividade. Não que toda obra de arte não esteja nessa disposição, mas o que vemos aqui passeia por lugares de acesso particular e de apreensão unitária, a cada espectador. 

O que organiza complexidade e comunicação a uma obra não é o tema tratado, mas a forma como esse material é disposto. Em linhas gerais, Peixe Abissal seria um filme hermético na acepção literal da palavra, e o que vemos são os movimentos sinuosos de uma poesia. Não aquela de construção clássica, mas uma como as de Capucho – selvagem e orgânica, que nos traga para um labirinto de sensações. Os lugares por onde seu espírito livre navega e que são humildemente absorvidos pelo seu diretor, colocam a sessão aqui em um lugar mágico, entre o delírio e os sonhos despedaçados, reféns de uma lógica interna que permite a fábula e a farsa dentro do rasgo real. 

Enquanto figura ‘queer’, também em mim conversa o universo marginalizado em que seu autor convive, onde cinemas pornô surgem como uma salvação entre o desejo e a necessidade de um abraço. A performatividade que Capucho representa dentro do universo LGBTQIAPN+ e está flagrante em Peixe Abissal é um lugar de dissenso da própria comunidade, e falo isso com conhecimento de causa não apenas por estar representado em uma das letras da sigla, mas por estar em lugares que o personagem já esteve. O desejo precisa ser limpo e socialmente apresentável, precisa ter nome e sobrenome e rosto aceitável, precisa ser, dentro da minoria, comprado pela maioria. A mim, a Capucho e a muitos outros, não interessa o padrão; as águas que nadamos tem orgulho de serem turvas. 

Um grande momento
O diálogo à beira da piscina

[26ª Mostra de Cinema de Tiradentes]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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