Deus e o Diabo Na Terra do Sol, de Glauber Rocha
(Brasil, 1964)
Cannes Classics
O Atalho (Meek’s Cutoff), de Kelly Reichardt
(EUA, 2010)
Quinzena dos Realizadores
exibição especial Prêmio Carrosse D’Or
Quando um festival de cinema cria uma seção com o nome de “clássicos”, ou quando oferece um prêmio a um/a cineasta pelo conjunto de obra, as escolhas que realiza nos dois casos nos informam sempre algo sobre o presente do estado do cinema, muito mais até mesmo do que sobre aquelas obras e sua relevância. Por isso, foi muito interessante o acaso de, no segundo dia do Festival de Cannes 2022, a programação de duas seções distintas exibirem, em sequência, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Atalho – dois filmes separados por 45 anos na história do cinema, vindos de duas cinematografias muito diferentes, mas que, assistidos em seguida, curiosamente nos criam algumas ideias de aproximação bem inesperadas.
No caso de Deus e o Diabo…, a sua presença na mostra de Clássicos em Cannes dificilmente viria como uma surpresa: trata-se afinal de um filme descoberto para o mundo neste festival, num ano de 1965 em que, exibido em conjunto com Vidas Secas na competição (algo bastante raro na época, diga-se, ter dois filmes de um mesmo país), causou grande efeito na consolidação da imagem do Cinema Novo como a grande marca histórica do cinema brasileiro no mundo. Portanto, no momento em que se completa (finalmente) uma restauração em digital de alta resolução do filme, é natural que a mostra dedique um espaço para o filme, dado que a exibição de obras com participação destacada no passado do Festival é uma das marcas dessa seção (o que sempre permite celebrar os filmes, mas junto com eles a história do próprio evento). Mais forte, porém, acabou sendo o fato de que ele terminasse por ser o único filme brasileiro exibido pelo Festival neste ano, em todos os formatos ou mostras: simbolicamente, o que isso consolida é uma ideia de cristalização de um imaginário de cinema brasileiro de acordo com uma imagem atrelada a um determinado passado; ao mesmo tempo em que, na prática, exibe o descaso (para não dizer boicote) da atual administração brasileira a qualquer política consistente de apoio à presença do cinema brasileiro contemporâneo no mundo.
É inegável que assistir Deus e o Diabo… na tela grande, em ótima qualidade de imagem e som, sempre terá um interesse renovado, pois faz parte da enormidade da obra de Glauber essa qualidade constantemente revelatória que parece conseguir manter face aos labirintos em que o Brasil se mostra envolto constantemente (e atualmente, em especial). No entanto foi ainda mais curioso poder ver esse filme tão intrinsecamente cristalizado no imaginário do cinema mundial logo depois de ver um filme ainda tão recente quanto O Atalho (Meek’s Cutoff) sendo colocado no lugar de destaque de uma sessão em homenagem a um conjunto de obra, como é o caso do prêmio Carrosse D’Or da Quinzena dos Realizadores, atribuído neste ano a Kelly Reichardt. Não só Reichardt é uma cineasta com menos de 60 anos de idade, como mais decisivamente encontrou seu maior reconhecimento no circuito mundial há aproximadamente 15 anos, e inclusive estará com seu novo filme em competição no Festival deste ano, o que é muito curioso numa situação de homenagem (para se ter uma ideia da raridade do gesto desse prêmio para alguém ainda comparativamente tão jovem, os últimos quatro vencedores haviam sido Werner Herzog, Martin Scorsese, John Carpenter e Frederick Wiseman, todos com pelo menos 50 anos de carreira).
Na fricção entre o clássico no sentido mais amplo que é Deus e o Diabo… e a construção de um “novo clássico” como O Atalho, muito se pode pensar sobre o cinema conforme visto da perspectiva de hoje. O que torna a curiosidade ainda mais interessante é que há uma série de aproximações possíveis entre os filmes, tanto por suas semelhanças quanto por suas diferenças. Por um lado, existe a sombra do cinema clássico hollywoodiano, em especial o western, assombrando ambos os filmes como motor de gestos de “enfrentamento”: no caso de Glauber, claro, um confronto direto na afirmação de uma forma autenticamente brasileira e livre de se aproximar do cinema e construir sua mitologia; do lado de Reichardt uma releitura do espaço do Oeste americano como mito fundador daquele país, já no contexto de um pós-pós-western, onde o revisionismo de um certo momento dos anos 60 para os 70 já deu lugar a um diálogo ainda mais franco com outras tradições do cinema, eminentemente em suas matrizes europeias (o que certamente ajuda a entender sua canonização precoce como autora “clássica” por essas bandas daqui).
Nos dois filmes, a ideia de narrativa clássica é confrontada a partir de elementos tanto formais (câmera, luz, montagem, trilha) quanto de construção de personagens e no seu perfil alegórico. Se Glauber joga mais frontalmente com uma estética do distanciamento que deve tanto a Brecht como a Eisenstein, pra citar apenas duas profícuas fontes de diálogo do filme, Reichardt aposta forte no mergulho na atmosfera, crendo menos na ideia de reconstituição histórica no sentido mais careta e muito mais na capacidade de habitar o tempo e o espaço da maneira como os pioneiros no Oeste americano fizeram. Nos dois casos, por esses caminhos distintos, há uma mais que inegável crença na capacidade do cinema de reescrever um mito de fundação de um país, que em Glauber tem algo de um constante recomeçar labiríntico e interminável, enquanto em Reichardt o que se busca é estabelecer as origens de um determinado pacto de construção de uma nação a partir da mistura entre ignorância, utopia e constante impossibilidade de comunicação (“we’ve come to a terrible place”, diz uma das personagens em determinado momento). Esse sentimento específico de um lugar é muito decisivo para os dois filmes, algo que em especial a fotografia de Waldemar Lima em Deus e o Diabo e o desenho de som de Leslie Schatz em O Atalho buscam radicalizar. O sertão brasileiro e o deserto norte-americano determinam seus personagens tanto quanto são afetados por eles. Da mesma forma, o confronto entre uma ancestralidade nativa contra os hábitos de invasores está sempre à flor da pele, assim como as determinantes relações de gênero vêm para o primeiro plano de forma bastante firme nos dois filmes.
Talvez seja natural, por fim, que em meio ao impulso em recolocar nossos olhares sobre esses dois países a partir do cinema que mira no passado para refletir o presente, ambos os filmes se encerrem a partir de uma imagem de personagens que seguem por uma imensidão de terra sem alcançar exatamente um destino. Afinal, o lugar aonde ambos “chegam”, por assim dizer, sabemos qual é: o Brasil de 1964, os EUA de 2010. Não há portanto conclusão possível que não seja no movimento e na inquietude, com algo de desolação em ambos os casos. Filmes de enorme ambição (ainda que na chave épica num, e muito mais contida no outro), vão sobrevivendo ao teste do tempo – um deles, cristalizado mas sempre redescoberto e transformado(r); o outro, em processo de entrada nesse cânone futuro, um dos papeis ao final das contas ao que aspiram os grandes festivais.