COUPEZ!
(Coupez!), de Michel Hazanavicius
(França/Japão, 2022)
Filme de abertura
A MÃE E A PUTA
(La maman et la Putain), de Jean Eustache (França, 1973)
Cannes Classics
Filmes de abertura têm a curiosa missão de apresentar um festival para seu público e, embora não necessariamente sejam a medida de seu interesse ou sucesso (inclusive porque muitas vezes são filmes com características bem específicas), sempre nos deixam elocubrar algumas coisas sobre as intenções mais gerais do evento. Neste 2022, o dia de abertura do Festival de Cannes teve como de hábito uma sessão oficial de inauguração, em que foi exibido o novo filme do cineasta francês Michel Hazanavicius, que em 2011 lançou em Cannes o seu O Artista – filme que acabaria ganhando o Oscar de melhor filme no ano seguinte, numa vitória significativa pro cinema francês que, seguramente, deu a ele quase que uma espécie de “direito adquirido” de lançar qualquer filme novo no Festival. No entanto, curiosamente, cinco horas antes dessa sessão o Festival recebeu uma outra “sessão de abertura”, em que foi exibida a cópia recém-restaurada de A Mãe e a Puta, importante filme também francês do pós-Nouvelle Vague, praticamente 50 anos depois da sua exibição no Festival, onde causou polêmica (inclusive por ter sido premiado com um importante Prêmio do Júri).
Oficialmente, essa primeira sessão “não-oficial” serviu para abrir a mostra Cannes Classics, onde todo ano o Festival exibe entre dez e quinze filmes da história do cinema que estejam sendo relançados ou recentemente restaurados. Porém, é inegável a sensação de que havia algo a mais na decisão pouco usual de programar essa sessão de maneira isolada, como uma primeira imagem de Cannes 2022, algo que provavelmente tem a ver com uma necessidade de combinar distintos aspectos sobre o festival na combinação dessas duas sessões no dia de abertura, especialmente nesse ano em que Cannes busca se apresentar como uma espécie de “retorno triunfal ao normal pós-pandemia” (pois é, mesmo que ela não tenha acabado). Este retorno, que poderia ser significativo apenas pelo fato do mundo ter passado esses dois anos em situação tão complexa, na verdade se torna ainda mais simbólico no que se refere ao mundo do cinema, em especial nas salas de exibição, e tanto mais nos recortes específicos do cinema de autor e, porque não dizer, dos festivais de cinema como um todo. Isso porque esses modelos de negócio estão, talvez mais do que nunca, colocados em xeque quanto a sua condição de subsistir futuramente em meio a uma migração maciça da atenção dos espectadores para o universo do streaming – um processo que, se já estava em andamento antes, se potencializou muito com a pandemia. Da mesma maneira, nas bilheterias do mundo inteiro se radicaliza também o fenômeno da concentração em percentagens absurdas do público ao redor de um número de blockbusters instantâneos.
Com isso, Cannes, como grande evento midiático do cinema para além do escopo hollywoodiano (embora nunca o excluindo de todo, como comprova a presença de Top Gun: Maverick já no segundo dia do festival), parece imbuído mais que nunca de uma missão em 2022: afirmar qual o lugar possível pro cinema no mundo de hoje. E aí, voltando às duplas sessões de abertura, o que se pode subentender na combinação dos dois filmes escolhidos, para além de uma celebração dupla do próprio cinema francês (sempre algo essencial para um Festival realizado com quase 10 milhões de euros de orçamento público nacional), é que Cannes tenta reforçar uma ideia de pluralidade, ao mesmo tempo em que busca afirmar que sua importância se faz notar em duas dimensões distintas. Por um lado, com Coupez!, o novo filme de Hazanavicius, apresenta uma clara demonstração do desejo de um “autor de prestígio” de se comunicar com o grande público que ainda hoje frequenta os cinemas comerciais (embora, vale dizer, o DNA do cineasta é muito mais próximo desse cinema popular, e a sua adoção pelo Festival há pouco mais de dez anos é que acabou sendo algo surpreendente), e portanto do Festival em deixar claro que também não quer ficar distante desse universo. Por outro lado, a visceralidade de A Mãe e a Puta reforçaria ao mesmo tempo que o Festival segue respeitando os gestos autorais mais radicais, e celebrando a tradição da sua história, algo muito relevante por aqui – para o que, a presença mítica de Jean-Pierre Léaud na sala de cinema muito contribuiu.
Trata-se de um jogo de equilíbrio incrivelmente delicado, porém. Porque ao mesmo tempo que hoje falar de Jean Eustache é uma posição algo bem mais segura, pelo reconhecimento algo mítico que ele recebeu principalmente após sua morte (no que, perversamente, o fato do filme ter ficado por um bom tempo difícil de ser visto em boas condições seguramente ajudou), não custa lembrar que, quando exibido em 1973, o então crítico Gilles Jacob, que quatro anos depois se tornaria diretor artístico do Festival, afirmou que se tratava de um “não-filme feito por um não-cineasta”. No entanto, mesmo que assim fosse ali estava o filme: na seleção, e premiado. Será, porém, que um cineasta propondo hoje um mergulho tão amargo e cru no sentimento do seu tempo (no caso, a França do pós-1968), num filme de uma narrativa dramaticamente bastante concentrada (praticamente três personagens, pouquíssimos cenários) mas durando 3h40 encontraria lugar na competição do Festival? Duvidoso, pra dizer o mínimo.
Por outro lado, será que a tal mensagem de “abertura ao cinema comercial” com o destaque ao novo filme de Hazanavicius não teria algo de capitulação? Isso vale se perguntar uma vez que o filme, embora sem dúvida se afirme como um grande elogio ao desejo do fazer cinema, por outro lado é impressionantemente desleixado em quase tudo que propõe na tela. É fato que esse desleixo se apresenta como algo de programático, já que o universo que retrata é o da realização de um filme barato por um personagem cineasta nada autoral. No entanto, para além da coragem de se abrir um filme com meia hora do que seria resultado da realização de um “filme ruim dentro do filme” pelo protagonista, a questão é que tudo que se segue a isso não é exatamente muito melhor: Hazanavicius reforça aqui suas piores tendências de efeitos dramáticos, os mais fáceis e francamente preguiçosos, humor quase sempre no limite do óbvio (e, pior, sem graça) e, em última instância, um diálogo com a ideia do fazer cinema e da potência das suas imagens que passa quase sempre pelo decalque e pela mitificação um tanto vazia desses impulsos. Trata-se de algo que estava já em O Artista ou em O Formidável, filmes apegados à história do cinema tão somente pelo que ela tenha de pitoresco ou de copiável.
Nada menos próximo, portanto, da sensibilidade de um Eustache, em sua consciência acerca do cinema e de sua história como algo intrinsecamente inseparável da força vital de seus personagens em sua existência plena na tela. O que Eustache tem de absurdamente honesto e frontal, Hazanavicius tem de derivativo e artificial. E ao mesmo tempo que não se desejaria afirmar que só seja possível fazer cinema de uma determinada maneira, o que a sobreposição dos dois filmes em suas posições parece nos afirmar é algo insidiosamente perigoso: que gestos como o de Eustache tenham espaço apenas (ou, no mínimo, principalmente) quando cristalizados como parte de um passado já digerido e codificado, mas que para o futuro se antecipa um cinema mais próximo de Hazanavicius. Se formos por aí, a pergunta que realmente fica é: sobrará alguma tradição para o Festival se orgulhar daqui 50 anos? Porque, com certeza, Coupez! nunca mais será exibido com grande respeito numa sala de cinema, seu futuro inegável é, ironicamente, os fundos de catálogos nos streamings da vida. E, se for assim, será necessário, então, reexibir a mais nova re-restauração de A Mãe e a Puta em 2073, pra lembrar do que já foi um dia o sentido de um festival de cinema no mundo das imagens? Dilemas a serem seguidos de perto.
Curte as coberturas do Cenas? Apoie o site!