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America: The Motion Picture

Vendo de fora

(America: The Motion Picture, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Matt Thompson
  • Roteiro: Dave Callaham
  • Elenco: Channing Tatum, Simon Pegg, Judy Greer, Bobby Moynihan, Olivia Munn, Amber Nash, Lucky Yates, Max Trujillo, Killer Mike, Dave Callaham, Jason Mantzoukas, Will Forte
  • Duração: 98 minutos

America: The Motion Picture, lançamento da Netflix, é uma animação feita para estadunidenses. Porém, não será surpresa se estiver na lista das mais vistas por aqui nos próximos dias, pois, mesmo sem conhecermos a nossa própria História, somos impelidos a buscar aquilo que diz respeito ao que vem lá de cima. O exato oposto deles. O povo dos Estados Unidos é conhecido por sua restrição de conhecimento no que diz respeito a outros povos e culturas. Admiradores conhecidos da própria história, restringem-se orgulhosos a ela. Então, antes de analisar o longa em si ou de apertar o play, vale pensar nessa relação com a produção não pouco volumosa de filmes — mas vale musical filmado — tão voltada a eles, no cinema enquanto arma de propaganda e no quão culturalmente colonizado somos a ponto de reconhecer personagens de uma História que nada tem a ver conosco e desconhecer aqueles que construíram o Brasil.

Mas vamos à recriação aloucada e completamente fora da realidade deste país excludente que eles insistem em chamar de América como se fossem donos de todo o continente. Dirigido por Matt Thompson, da série animada Cake, e roteirizado por Dave Callaham, de Mulher Maravilha 1984 e Mortal Kombat, a animação faz um apanhado de diversos fatos históricos e os desvirtua completamente para contar a história que nunca aconteceu dos Estados Unidos. Seguindo a linha besteirol, a ideia, desde o primeiro momento, é rir de tudo e de todos. Absolutamente nada é levado a sério. 

America: The Motion Picture

A veracidade dos fatos e a linha temporal não são respeitadas de maneira alguma. Tudo que existe, existe para ser sacaneado. O Teatro Ford ostenta a logomarca atual da empresa, George Washington e Abraham Lincoln, que nunca chegaram a se conhecer — o primeiro foi presidente muito antes do nascimento do segundo — são melhores amigos desde a infância, e o traidor Benedic Arnold é quem assassina o presidente durante um show do Stomp. E assim seguem todos os eventos, com encontros impossíveis e a reconfiguração de personagens e de suas personalidades.

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A gangue de Washington, aquela que lutará pela liberdade em America: The Motion Picture é formada do jeito mais improvável e por pessoas de personalidades completamente diferentes das conhecidas. O primeiro ex-presidente é um aparvalhado que termina todas as frases alegando ser uma mesma citação bíblica (“João, 3:16”); Samuel Adams é um branquelo racista e machista líder de fraternidade que quer tornar a cerveja mais popular do que o chá; Paul Revere é um cavaleiro bobão com uma relação esquisita com animais encontrado numa corrida clandestina; e os mais inteligentes são Thomas Edison, uma cientista mulher chinesa que foge de uma condenação a la inquisição e Gerônimo, um cowboy solitário e ratreador que quer recuperar as terras de seus ancestrais.

America: The Motion Picture

Tem espaço para quase tudo, Lynyrd Skynyrd, lobisomem, Titanic, Enigma, holograma e funeral de Lincoln ao som de The Bangles, com a presença de Lin-Manuel Miranda, Martin Luther King, Marilyn Monroe e JFK. America The Motion Picture é baseado em referências e elas vão além dos livros de História, chegando a espaços e personagens conhecidos do cinema, como Robocop, John Wick, Cães de Aluguel e elementos da saga Star Wars. A grande batalha entre as tropas britânicas e as estadunidenses, que remonta à Guerra dos Sete Anos, faz um mashup com o universo de George Lucas, com Big Ben, ônibus vermelhos e saquinhos de chá e até mesmo uma bola de futebol virando arma ou veículo de batalha.

A ação, aliás, é o que chama a atenção para além do humor. Há passagens realmente bem elaboradas, como a primeira luta de Washington após a morte de Lincoln e a fuga da polícia enquanto perseguem Arnold. Voltando à gozação de Thompson e Callaham, ela está muito presente nas pautas sociais e o filme até tem um caráter educacional importante para aqueles a quem foi destinado quando fala de diversidade, racismo, machismo, armamento e a própria postura dos estadunidenses. 

America: The Motion Picture

Porém, mesmo com seus acertos, o filme tem vários descompassos e não consegue manter o fôlego durante toda sua duração. Ainda pior, America: The Motion Picture encontra um limite que os estadunidenses parecem ter um certo pudor de ultrapassar ao sacanear a própria História. O final da batalha, ainda que tente ser revertido depois, é de uma posição tão irreal e ilusória, mas tão a cara dessa imagem que se insiste em propagar há tantos anos que nem chega a impressionar. É aquela visão que fica e que contraria o que eles passaram 98 minutos construindo, que se compra mundo afora e que faz com que se deixe de olhar para dentro e, hipnoticamente, se continue olhando para lá. 

Um grande momento
“Você tem que colocar sua mensagem num desenho para que entendam”

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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