(Carne, BRA, 2019)
“Toda mulher não vive o corpo que ela tem”. Construído entre muitos signos e significados, Carne, de Camila Kater, é um passeio pelas fases da vida da mulher. Essa relação da sociedade em relação ao corpo feminino, destacada no título está em cada um dos depoimentos. Dessubjetivadas, somos carne e, com isso internalizado, vivemos uma vida para que o nosso corpo satisfaça o resto do mundo. Visualmente, sexualmente. Esta não aceitação da imagem talvez seja a arma mais forte da prisão onde nos encontramos: determina-se a imagem e temos problemas em não segui-la. A libertação é um caminho árduo e constante.
A animação reúne cinco mulheres para que cada uma fale de sua relação com o corpo: da infância à velhice, da carne crua à bem passada. São vivências muito diversas, onde essa relação com o social é destacada. São várias formas de opressão: gordofobia, transfobia, lesbofobia, violência obstétrica e outras. O padrão, mais do que estar dentro de cada uma, é cobrado, os estereótipos são aplicados. É difícil fugir de algo que, mesmo externo, toma conta da gente.
As mães que querem as filhas magras ou amadurecidas, os homens que se sentem ameaçados pela beleza trans e a ameaça de morte, a mutilação para resolver algo natural do corpo, o modo como se trata a velhice. Kater passeia por cada uma desses relatos construindo graficamente os sentimentos daquelas que falam, mas ao mesmo tempo, exalta a beleza natural de cada uma daquelas vozes. O não ver, tão preciso quando se fala de identificação, ganha uma forma, que não afasta essa possibilidade, mais do que isso, universaliza ainda mais o que está sendo dito.
Fugindo do formato clássico das cabeças falantes e ilustrando com muitas cores e movimentos, Carne encontra a cura e conforto que tanto as depoentes quanto as espectadoras necessitam. O sentir-se parte, sentir-se representada na tela, em experiências que são ao mesmo tempo pessoais e coletivas traz uma força para que se lute contra tudo isso que estão ao nosso redor e tão dentro de nós. Não que seja fácil, sabemos que não é, mas o olhar para isso é um primeiro passo importante.
O reconhecimento do corpo como algo seu e individual é fundamental para que estruturas se rachem e uma nova verdade – a única verdade, no caso – se estabeleça. O corpo da mulher não é um pedaço de carne, não diz respeito a ninguém que não seja ela mesma e não pode ser nomeado, determinado e utilizado como os outros bem entendem. Em sua animação simples e leve, que mistura tantas técnicas quanto são os tipos de mulheres e suas histórias, o curta-metragem chega muito longe.
Um grande momento
Minha mãe sempre quis que eu fosse a bonequinha dela.