- Gênero: Comédia
- Direção: Lena Dunham
- Roteiro: Lena Dunham
- Elenco: Bella Ramsay, Andrew Scott, Billie Piper, Joe Alwyn, Sophie Okonedo, Lesley Sharp, Isis Hainsworth, Paul Kaye, Dean-Charles Chapman, Michael Woolfit, David Bradley, Mimi Ndiweni, Rita Bernard-Shaw, Archie Renaux, Douggie McMeekin, Jordan Adene, Ralph Ineson
- Duração: 105 minutos
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Lena Dunham surgiu para o ‘pequeno mundo’ com Tiny Furniture, um projeto indie até a raiz dos cabelos com a qual foi muito elogiada. Logo em seguida, o ‘grande mundo’ a viu transformar Girls em um dos muitos fenômenos surgidos na HBO nas últimas décadas. Sua visão ácida e precisa acerca da voz jovem feminina, aquela que se entende corajosa e independente, a colocaram em posição de tamanho destaque, que não era preciso que ela fizesse muito mais. Pois bem, foi o que aconteceu, deixando no ar a dúvida: a indústria estava preparada para seu corpo, ou o de qualquer corpo feminino de ruptura com o que está pré-estabelecido? Hoje estreia na Amazon Prime Video Catarina, a Menina Chamada Passarinha, um de seus dois filmes de 2022, e podemos dizer sem medo de errar que ela faz falta.
Baseado no livro de Karen Cushman publicado em 1994, não falta coragem à produção. Trata-se de uma comédia infanto-juvenil muito adulta, passada em 1290 (sim, você leu certo). De uma maneira extremamente leve, Dunham transforma o que à primeira vista pareceria com um título extraído da mente de Jane Austen, em um conto refrescante sobre a descoberta de um feminismo que ainda nem havia sido sequer aventado, há mais de 700 anos atrás. Sua protagonista, no entanto, deseja – e luta por – uma liberdade que simplesmente nem se imaginava concebida naquele tempo. Como convencer homens e mulheres a respeito de um sentimento que nem ela mesma compreendia, ou que fosse sequer ouvida sem qualquer exemplo prático anterior?
Quando digo que há coragem nas decisões de Dunham (e provavelmente também de Cushman), é porque Catarina, a Menina Chamada Passarinha ousa colocar em cena um arsenal de personagens dóceis e absolutamente adoráveis, construídos por atores em desempenhos incríveis, para cometer atos muito arcaicos. Mais do que isso, a violência perpetrada em cena, não apenas verbal como física, soa quase animalesca e inconcebível em muitos momentos. Não é um dado simples, do tipo “ah, mas na época isso estava dentro de um esquema de normalidade”; essa seria a saída mais comum para o projeto. O que torna essa coragem muito reveladora é como Dunham o faz dando camadas a cada um de seus tipos em cena, que são muito maiores do que suas atitudes.
Isso tudo colocado em cena em uma “comédia para toda família”, e percebemos assim que as zonas acinzentadas da produção podem provocar muitas discussões no presente, por sua audácia. Catarina, a Menina Chamada Passarinha, assim sendo, pega emprestado de sua protagonista, seus quilos de coragem para tentar deflagrar um debate acerca da manutenção dessa liberdade através dos tempos. O que Catarina desejava em seu tempo hoje já nem deveria mais ser uma questão, mas as meninas pararam de ser vendidas por seus pais em países do Oriente Médio? Mulheres deixaram de ser apedrejadas em praça pública? Tribos africanas deixaram de cortar os clitóris de suas jovens em rituais sádicos? Nesse momento, tudo o que é doce e culturalmente aceito no tempo do filme, desce com amargura triplicada.
Por isso o pai de sua protagonista, vivido por Andrew Scott, parece tão aviltante aos olhos do espectador. Em prática ordinária da época, ele só tem uma saída para salvar a família da falência – vender a filha. No caminho para tal prática, Catarina leva diversas surras, ou dá a mão para a palmatória, literalmente. Catarina, a Menina Chamada Passarinha faz por onde entendermos o personagem, pai amoroso que só deseja… trocar a filha por moedas de ouro a um homem asqueroso. O final do personagem parece não o libertar, mas tentar humanizá-lo ainda mais e nos provocar dúvida: afinal, isso não era o que um homem deveria fazer? Dunham, no entanto, transforma toda essa discussão em uma sessão reflexiva que nunca deixa de entreter e encantar, por incrível que pareça.
Com uma direção precisa, que consegue equilibrar doses nada pequenas de sadismo e constrangimento, transformando situações delicadas e desconfortáveis em palco para uma produção simplesmente adorável, Catarina, a Menina Chamada Passarinha é um acerto. Com um elenco incrível encabeçado pela encantadora Bella Ramsey (que vai explodir ano que vem em The Last of Us), Dunham consegue o inimaginável aqui. Aplicar senso de humor a cenas complexas, moldar um debate extra fílmico que ainda é necessário em um mundo onde a violência contra a mulher ainda corre ao nosso redor, realizar uma produção esteticamente caprichada e ainda encontrar tempo para promover diálogos de muito bom gosto, nos fazendo se sentir culpados e conflitantes em muitas passagens. É… Dunham mais uma vez aprontou das suas, precisamos não deixá-la sumir de novo.
Um grande momento
Heróis só estão nas histórias