Certas Pessoas

Nós já vimos essa história antes, especificamente. Trata-se de mais uma reimaginação do Adivinhe Quem Vem Para Jantar?, clássico de Stanley Kramer indicado a muitos Oscars (e que deu um dos quatro de atriz para Katharine Hepburn) que foi um marco no olhar para o racismo estrutural sistêmico, lançado no mesmo ano de No Calor da Noite, o vencedor do Oscar que era explosivo sobre as mesmas questões. Certas Pessoas tenta lidar com isso de maneira indie, debochada e cool, mas não muda em nada uma estrutura de roteiro tão engessada que passamos o tempo adivinhando os passos seguintes da engrenagem. O filme é um sucesso na Netflix, o que deve acontecer pela presença dos astros Jonah Hill, Eddie Murphy e Julia Louis-Dreyfus no elenco. 

Na verdade, uma outra história com a mesma premissa já havia sido lançada em 2005, com Bernie Mac, Ashton Kutcher e Zoe Saldana como protagonistas. Aqui, a diferença é que a família branca também importa, e o roteiro parte do princípio do embate entre dois grupos, os negros e os judeus. A essa altura, esse tipo de tentativa de conciliação através da comédia romântica soa datada, até porque, como já dito, é uma estrutura muito velha para uma narrativa que já não agrega nada de novo. A substância é tratada como uma ideia de 2023, com sua montagem fragmentada, seus diálogos ácidos, e as piadas politicamente incorretas em profusão. O tiro sai pela culatra sob vários aspectos e o filme acaba por soar antiquado.

Certas Pessoas mostra que, sob esse viés, não há mais muito o que dizer, tendo em vista que nenhuma ideia foi atualizada de verdade, a não ser em como mudar o teor das piadas; a intenção e o destino é o mesmo. Kenya Barris é um dos roteiristas de Viagem das Garotas e Um Príncipe em Nova York 2, e aqui ele realiza sua estreia na direção. Com um elenco afiado em mãos, muito de seu trabalho é poupado porque aquelas pessoas acreditam no que fazem, e o fazem com empenho visível. Mas a burocracia da ideia é tamanha, que impede os atores de alcançarem o que já os vimos fazer com facilidade outras vezes. Não vou citar então o desperdício de veteranos como Elliott Gould e Rhea Perlman, jogados em qualquer canto. 

Logo no começo, Certas Pessoas passa uma impressão diferenciada. Seus personagens tem alguma delineação, seus empregos parecem ter importância, a relação entre seus núcleos parece ter um propósito. Em menos de meia hora, já percebemos que o filme prima pelos excessos de envolvidos, de situações e de boas intenções, mas que nada avança para longe da premissa. Personagens como os de David Duchovny e Nia Long produzem constrangimento (porque pai do noivo e mãe da noiva são tão escamoteados?), a relação de Ezra com sua amiga nunca rende o que pretendia, o casal protagonista não consegue criar química. Trata-se de uma produção avulsa, mais repleta de sentimentos corretos do que de realização acertada, e bastante frustrante. 

 O que a produção entende como imageticamente moderno, no entanto, parece retirado de um baú dos anos 1990. Muitas vezes, a textura de Certas Pessoas não se difere de um Na Real da MTV, ou mesmo dos clipes periférico-urbanos da mesma emissora, para o hip hop. É uma ideia que, se foi considerada autêntica e ousada algum dia, hoje só causa embaraço pelo tanto de cafonice que está impressa ali. A forma como o filme também começa a avançar, aos trancos e barrancos, sem deixar qualquer sintoma de preocupação, retira todas as impressões que inicialmente o filme tentou cumprir. O que fica na superfície é um conjunto de tentativas que não conseguem se transformar em algo concreto. 

O elenco, muito talentoso, não consegue dar ênfase às suas potencialidades, porque é sabotado pela montagem, pelo roteiro, ou seja, por quem deveria auxiliá-los. Ainda assim, estamos falando de Eddie Murphy, Jonah Hill, Julia Louis-Dreyfus, e (excelente) companhia; são profissionais que tiram de letra clichês e estereótipos narrativos, para conseguir imprimir sua verdade na tela. -, manter pautas identitárias, falar de todos os temas possíveis em menos de duas horas, e não consegue chegar nem perto de dar conta. O exemplo é quando a irmã de Jonah Hill é “tirada do armário”, e ficamos sem precisar o motivo da cena. Apenas é, como todo o filme. Então tá. 

Um grande momento
“Rise Up”