Repetindo o modelo da mesa etnorracial realizada na última segunda-feira, quando realizadores relacionados à temática foram reunidos para debater o assunto, a III Mostra Sesc de Cinema sediou na tarde de quarta-feira (6) a mesa sobre cinema LGBTI+. Com mediação extremamente participativa da cineasta e atriz Julia Katharine (SP), membro do júri oficial, o debate contou com os diretores Galba Gogóia (RJ), de Jéssika; Íris (MT), de Majur; Émerson Maranhão (AL/CE), de Aqueles Dois; e Brunna Laboissière (GO), de Fabiana. Como todos os filmes têm protagonistas trans e três participantes da mesa o são, a letra T da sigla naturalmente dominou a conversa, que atingiu vários meandros e complexidades da vivência trans artística, mas não só.
O ponto mais frisado foi a necessidade da naturalização, processo que passa pela representação plural, pela tomada de espaço nos cargos criativos, pela superação do estereótipo da mulher trans prostituta marginal e talvez por ações mais controversas, como o fim de mesas de discussão nesse estilo nos festivais e da classificação “filme LGBTI+”, como se isso fosse um gênero tal e qual drama, comédia ou ação – a mesma coisa que era feita com o “cinema nacional”. Particularmente concordo com Julia quando ela defende que as pessoas fazem cinema, que por acaso tem trans envolvidos na frente ou atrás das câmeras, e também vejo sérios problemas no atual modelo de organização de debates cinematográficos, que basicamente reúne os negros para discutir o cinema negro; as mulheres cis, héteros, brancas para discutir o cinema feminino; os LGBTs para discutir o cinema LGBT e por aí vai.
Essas “caixinhas” precisam ser misturadas, novos temas devem ser pensados e recortes devem ser propostos para a reunião daqueles que enfrentam a hegemonia da narrativa masculina, branca, hétero, cis, classe alta das capitais do sudeste. Do jeito que está reinam a repetição e a difusão, mas apenas acabar com os debates segmentados seria perder conversas extremamente ricas e específicas como essa, por isso creio na redefinição das pautas como alternativa possível.
O declarado incômodo gerado por pessoas não pertencentes ao grupo contando suas histórias teria sido uma boa deixa para Laboissière, mulher cis diretora de Fabiana, entrar na discussão, mas a cineasta preferiu se preservar no lugar de escuta praticamente durante toda a mesa, a exceção sendo a defesa que fez de sua abordagem da personagem Fabiana, observando a transexualidade como uma das características da caminhoneira, mas não seu traço definidor ou o centro do longa.
Não é pedir muito que personagens trans tenham histórias para além de questões relacionadas à identidade de gênero, assim como não é aceitável que realizadores busquem consultorias e revisões de seus roteiro por LGBTs sem oferecer remuneração, como se isso fosse um favor à sua própria carreira – que nunca deslancha porque oportunidade de fato de trabalho ninguém quer dar – e à representatividade no audiovisual.
Conforme esperado, a polêmica do “atores cis devem ou não interpretar personagens trans” ocorreu e Katharine, coerente em seu discurso de antissegregação, declarou crer que tudo é possível desde que atores e atrizes trans também sejam contratados para interpretar personagens cis, afinal ela enquanto profissional não tem interesse em passar o resto da vida fazendo apenas personagens trans e tampouco vê lógica em cercear a liberdade artística do realizador de tal forma. Também atriz, Galba Gogóia, por outro lado, disse que não acredita ser o momento de atores cis viverem trans, o que também faz sentido, mas se perdeu ao colocar no mesmo balaio um cis como trans e um branco fazendo blackface, situações obviamente bem distintas.
Emerson ressaltou o papel fundamental dos filmes enquanto farol e da resistência LGBTI+ em meio ao “tsunami de retrocesso” que atinge o país, e ao fim do debate, considerando todas as experiências compartilhadas e relatos surreais ficou claro o quanto ainda há enorme desrespeito e falta de cuidado com as/os trans mesmo num meio supostamente vanguardista como o cinema.
Foto em destaque: “Preciso Dizer que te Amo”, de Ariel Nobre