Crítica | Festival

Mateus

(Mateus, BRA, 2017)
Documentário
Direção: Déa Ferraz
Roteiro: Déa Ferraz
Duração: 139 min.
Nota: 8 ★★★★★★★★☆☆

Um fusquinha azul conduz o respeitável público ao encontro de quatro lendários brincantes da Zona da Mata pernambucana. São Mateus do Cavalo-Marinho, procurados com afinco pelos atores Odília Nunes e Claudio Ferrario, que durante as andanças entretêm os moradores locais apresentando-se como os palhaços Bandeira e Jurema. Novo longa-metragem de Déa Ferraz (Câmara de Espelhos), Mateus é um road movie classicão cuja transgressão é achada na figura do Mateus, personagem mais sem limites do folguedo, que “causa” como se não houvesse amanhã; e, principalmente, na missão pessoal de Odília: ser aceita na brincadeira exclusivamente masculina interpretando Catirina, sua parceira, tão inquieta quanto ele.

Leve e cadenciado, o documentário estabelece desde o começo seus eixos – tanto na apresentação dos palhaços na praça antes do pé na estrada para a busca de seus ancestrais quanto no questionamento de Odília ao primeiro Mateus sobre a possibilidade dela brincar como seu par –, mas não cai na perigosa armadilha do didatismo televisivo, pois não tem urgência em explicar quem é Mateus e o que faz. A compreensão vem da absorção do depoimento e especialmente da performance dos criativos Luiz, Mocó, Zé de Bibi e Martelo, cada qual com suas particularidades, o que resulta também num entendimento da pluralidade da cultura popular resguardada basicamente pela oralidade.

É um filme de relações: dos moradores com os palhaços forasteiros, dos Mateus descaracterizados com os visitantes inesperados, dos companheiros de viagem, da Catirina mulher com os brincantes não habituados. Relações estas cuja construção é reproduzida na conexão filme – espectador, já que há uma simpatia e abertura imediata pelo primeiro contato mediado pelo humor e a intimidade só vai crescendo, como se ocorresse de fato a convivência com aquelas pessoas culminando no compartilhamento de sentimentos. Isso é possível especialmente pelo roteiro muito bem amarrado, pela direção de fotografia sempre interessada nos olhares e reações e pela excelência em multifunção de Odília e Claudio, ora mediadores, ora investigadores, ora aprendizes, ora personagens.

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Mateus guarda a rara beleza da naturalidade, tanto nas conversas e no contracenar dos brincantes quanto na emoção que surge simples e sem aviso. Por meio das anedotas e ações é possível refletir sobre a arte como catalisadora de transformações sociais e pessoais, a falta de valorização (em termos financeiros) do artista popular, o risco do fim da tradição pelo desinteresse dos jovens, o conservadorismo e o preconceito no sertão e ao mesmo tempo a cabeça aberta desses mais velhos ao subverter as regras sem problemas. Temas gigantes acessados pelo singelo ato de sentar e escutar – e ler, no caso do espectador, pois a legenda em português é um grande acerto no impedimento que expressões bem próprias da região e do Cavalo-Marinho se perdessem no som –, o que nos dá até a ilusória impressão de que tudo pode ser descomplicado como fazer ou aceitar um convite para brincar livremente.

Um Grande Momento:
O choro de Odília.

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[III Mostra Sesc de Cinema]

Taiani Mendes

Crítica de cinema, escritora, poeta de quinta, roteirista e estudante de História da Arte. Também é carioca, tricolor e muito viciada em filmes e algumas séries dos anos 90/00.
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