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Câmara de Espelhos

(Câmara de Espelhos, BRA, 2016)
Documentário
Direção: Dea Ferraz
Roteiro: Dea Ferraz
Duração: 76 min.
Nota: 6 ★★★★★★☆☆☆☆

Teoricamente, um bom trabalho crítico envolve o absorver a obra; relaciona-la com um sem número de coisas, tendo em vista o momento histórico, sua especialidade, vivência e conhecimento; transformar tudo isso em palavras e, mesmo que a subjetividade perpasse todo o processo, chegar a um conclusão que seja maior do que a sua opinião.

Há filmes em que o encontrar da situação, seja histórico ou social, permite que isso aconteça com facilidade, mesmo que marcas ideológicas sejam inevitáveis. Há outros em que o reconhecimento é tão evidente – e potente – que o afastamento torna-se impossível em qualquer que seja o grau. É o caso de Câmara de Espelhos, documentário de Déa Ferraz em cartaz nos cinemas.

Impossível que eu consiga apagar ou minimizar as reações a falas há tanto repetidas, ao preconceito que surge nos depoimentos daqueles que se julgam livres do machismo. Foram muitos anos me recolhendo ao som dessas palavras, outros tantos tentando arrancá-las de dentro de mim e percebendo o quanto elas também me contaminavam, e mais alguns para tentar despertar uma nova consciência na minha filha e no meu filho. Fica o aviso, portanto, de que o tom deste texto será completamente pessoal e guiado, exclusivamente, pelo sentimento que o filme despertou em mim.

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Para alcançar seu objetivo, Ferraz executa uma dinâmica comum aos documentários. Um anúncio no jornal reúne homens bem diferentes em um estúdio pré-concebido para possibilitar as filmagens – a câmara de espelhos do título – e, ao mesmo tempo, a interação entre eles. O simular de uma conversa faz com que eles se sintam confortáveis para comentar os vídeos selecionados pela diretora aos quais são expostos.

Clássicos machistas como o ter que se dar ao respeito, o relacionar de comportamentos e falas tido como inadequados, a composição dos papéis de provedor e doméstica, as teorias para traços tidos como incapacitantes e a constante inferiorização estão na boca de todos. Entre os selecionados para a experiência, alguns, principalmente os mais velhos, surgem como casos perdidos; mas mesmo os mais novos, aqueles que se auto-percebem progressistas, não deixam de replicar valores arraigados na cultura machista e patriarcal em que todos estamos imersos. Nada do que se escuta é novo. São comentários comuns em rodas de conversas, sejam elas familiares, em mesas de bar e, nos tempos atuais, nos famigerados grupos de WhatsApp.

Há um claro e trágico retrocesso quando se olha para além da tela. Aquilo que Ferraz usou subterfúgios para captar, já que, quando da gravação, havia um movimento para a omissão deste machismo, hoje se encontra num movimento de superexposição, resultante de uma onda de ódio e retrocesso. O sexismo se expõe como demanda reprimida do mal, legitimada após a eleição de um presidente que sempre propagou um discurso extremamente machista e misógino.

É como se todo o machismo estrutural presente naquelas falas se sobrepusesse a qualquer avanço que possa ter havido com os novos movimentos feministas, a qualquer tentativa inclusiva, a qualquer evolução rumo à igualdade de gênero. Todos sabem, e o filme mostra bem isso ao acessar um outro momento, que foram avanços muito discretos e ineficientes.

Tem-se então dois pontos: aquele que demonstra a permanência em meio a uma onda progressista – o momento do filme – e o que demonstra aquilo que nunca deixou de existir e agora ganha as ruas com uma força reativa inacreditável – o conteúdo perene do filme. É como se a nossa sina em questões de direitos humanos se concretizasse num eterno dar um passo à frente e vinte atrás.

O que virá dessa legitimação do discurso excludente e da inferiorização e objetificação da mulher ainda não se sabe. Mas não há de ser coisa boa. Em momentos de moralização extrema, fanatismo político e religioso, e reacionarismo, tendo como ambiente uma democracia que nunca se estabeleceu realmente, sempre são os direitos civis que se enfraquecem ou se perdem. E os efeitos do retrocesso podem ser enormes.

Câmara de Espelhos é um filme relevante por expor essa cultura de manutenção de poder e opressão da mulher que vem sendo constituída desde o princípio da civilização e que encontra no Brasil dos dias de hoje um lugar ainda mais seguro para ser resgatada e desenvolvida. Às mulheres, é preciso estômago para assistir; aos homens, vergonha por cada palavra que representa qualquer pensamento seu; a todos, a certeza de que a ruptura com esse padrão é urgente. É preciso que se olhe para o machismo e o reconheça para haver a mínima possibilidade de combatê-lo.

O momento político não é o mais propício, mas momentos impróprios são ótimos para o surgir da força. Já são vinte passos a serem recuperados e outros tantos que só uma sólida barreira, formada com a conscientização, conseguiria impedir. Não podemos esmorecer e nem perder tempo. E é preciso, agora mais que nunca, que estejamos realmente juntos.

Um Grande Momento:
As contradições.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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