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Rasga Coração

(Rasga Coração, BRA, 2018)
Drama
Direção: Jorge Furtado
Elenco: Marco Ricca, Drica Moraes, Chay Suede, João Pedro Zappa, Anderson Vieira, Nélson Diniz, Kiko Mascarenhas, Fábio Enriquez, Luisa Arraes, Cinândrea Guterres, Duda Meneghetti, George Sauma
Roteiro: Oduvaldo Vianna Filho (peça), Ana Luiza Azevedo, Jorge Furtado, Vicente Moreno
Duração: 113 min.
Nota: 6 ★★★★★★☆☆☆☆

Tá lá o corpo
Estendido no chão
Em vez de rosto uma foto
De um gol
Em vez de reza
Uma praga de alguém
E um silêncio
Servindo de amém…

Entre tantos os pensamento possíveis, as primeiras imagens de Rasga Coração, pela semelhança da situação, podem remeter ao clássico da MPB, “De Frente pro Crime”, de Aldir Blanc e João Bosco. Aquele corpo estendido no chão, largado, abandonado por horas, pode ser o que motiva toda a exploração da vida daquele que foi um dia Manguari Pistolão. O homem, que no passado militava contra a ditadura militar, vive uma rotina estável e, como tantos outros servidores públicos, conta dinheiro para as compras do mês, tem problemas geracionais com o filme e sofre com uma doença que chegou com a idade.

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Jorge Furtado, assim como Oduvaldo Vianna Filho na peça homônima em que o filme é inspirado, constrói a sua história em dois tempos narrativos diferentes, conciliando eventos do passado com situações presentes. O protagonista, vivido por Marco Ricca e João Pedro Zappa, é complexo e cativante. O jovem que sai de casa por suas incompatibilidades com o pai e seu afã de lutar contra um sistema de governo com o qual não concorda, precisa agora entender que os motivos de luta das novas gerações são outros e o modo de lutar também.

“A força e a fraqueza do tipo de crítica que sabe como julgar e condenar o presente, mas não sabe como compreendê-lo”, dizia Marx em frase aproveitada no prólogo da obra de Vianna Filho e que cabe tão bem na vida cotidiana. O maior interesse de Rasga Coração, porém, vai além dessa incompatibilidade entre pais e filhos e se encontra justamente no passar do tempo e no arrefecer da luta. Aquela elite engajada, que em seu tempo se dedicou ao enfrentamento, um dia encontra-se presa a uma busca pela tranquilidade e o conforto.

A estabilidade e o dinheiro para pagar as contas no fim do mês, acaba sufocando a militância e o individualismo toma o lugar das pautas sociais. Há um momento no filme em que isso chega de maneira dolorida, quando Manguari percebe que seus relatórios sobre o ensino público, muito bem intencionados, podem servir a quem não deve e ele acaba enquadrado pelo sistema. O mesmo acontece quando demonstra comoção ao enxergar na luta de seu filho, Luca (Chay Suede), uma fagulha daquele vigor há tanto perdido.

Contando com atuações inspiradas, Furtado constrói tudo de maneira muito simples, em quadros que privilegiam o cotidiano e o familiar. Embora encontre algum descompasso no ritmo ao alternar entre os tempos que aborda, faz com que sua história intrigue quem a assiste, possibilitando assim identificações que falam alto aos espectadores, principalmente no atual momento político.

No seu falar sobre o tempo e o conforto, Rasga Coração também não esquece de delimitar aquilo que conta. Ele está falando de uma elite privilegiada, num país onde aparências importam, sim, e onde a cor da pele ainda hoje determina o futuro das pessoas. Furtado sabe como provocar o incômodo que o tema precisa e expor a indiferença com que é tratado. Porque, depois que a juventude passa, aqueles problemas que não atingem diretamente são tidos como distantes, desnecessários. E é muito fácil olhar pro corpo no chão e fechar a janela de frente pro crime.

Por falar em referências musicais, a música de abertura de Rasga Coração, o clássico “Iara”, de Anacleto Medeiros e Catulo da Paixão Cearense, imortalizada por Vicente Celestino, é a verdadeira inspiração por trás da obra, e está na peça de Vianna Filho, onde cenas se constroem a partir de seus versos.

Um Grande Momento:
Saindo da prisão.

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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