Crítica | Festival

Conferência

Os que falam e os que calam

(Конференция, RUS, EST, GBR, ITA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Ivan I. Tverdovskiy
  • Roteiro: Ivan I. Tverdovskiy
  • Elenco: Filipp Avdeev, Natalya Pavlenkova, Anna Slyu, Natalya Potapova, Natalya Tsvetkova, Yan Tsapnik, Kseniya Zueva, Aleksandr Semchev
  • Duração: 135 minutos

Como se apropriar de um episódio real, trágico e marcante, da história do próprio país, para renovar os votos a respeito da necessidade da memória, de preservar a tragédia em um lugar onde possamos minimamente e compreendê-la e não reiterá-la: talvez só mantendo vivo nossos próprios fantasmas. Apostando em uma disposição para um debate doloroso acerca da expiação de demônios muito vivos, Conferência chega no Olhar de Cinema sem disposição para a calmaria. No caminho oposto, acompanhamos a via crucis de um núcleo familiar destruído, que se auto mutila psicologicamente, para enxergar os dois lados da lembrança.

Ivan I. Tverdovskiy tinha acabado de esbarrar comigo há pouco tempo. A Reserva Imovision tinha acabado de colocar em cartaz Jumpman, um filme bem forte e anterior a esse novo dele, mas já chamava atenção como sua juventude (tinha menos de 30, na ocasião) não suplantava sua coragem, tanto estética quanto narrativa. Aqui, ele faz o caminho inverso e vai para um radical naturalismo, prendendo o espectador em sequência de mais de uma hora de duração repleta de camadas dolorosas, a partir da recriação ficcional desse evento traumático ocorrido há quase 20 anos atrás, sem medo de incomodar – o que eventualmente acontece.

Aqui, o diretor abre mão de uma ênfase no lado mais gráfico da autoralidade para construir uma atmosfera dolorida que é reiterada por sua protagonista a todo tempo. Sua lógica é a tradicional – o povo sem memória tende a repetir à exaustão os mesmos erros. Até aí, sua fala contempla qualquer um que tenha bom senso. Só que esse jogo que será proposto pela personagem da atriz Natalya Pavlenkova (em impressionante performance), na teoria, propõe uma solução a longo prazo para um contexto histórico. A curto prazo, quem gosta de cutucar a ferida até ela voltar a sangrar, e nunca deixá-la cicatrizar?

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Conferência (2020)
Cortesia Olhar de Cinema

Não há uma tentativa de absolvição de seus personagens, e Conferência ainda acerta ao não resvalar na óbvia recriação imagética dos eventos, tratando tudo com distanciamento do tempo que não dissolveu o sofrimento, pelo contrário, destruiu continuamente todas as relações que essa mulher construiu na vida, principalmente seus laços familiares. Em cena, há uma necessidade de traduzir esse conjunto de pessoas em uma espiral de desagregação, ainda que suas intenções sejam de outra natureza. A tragédia que vitimou mais de 100 russos durante uma apresentação teatral é descentralizada dos eventos para uma sistemática manutenção de rancores, onde não há razão.

A cena-chave, que percorre mais da metade de um filme de duração já elevada, é crucial para entendermos que a violência e o terror não são perpetrados somente por quem os comete, literalmente. As vítimas de atos terroristas, não raro, desenvolvem em suas interrelações, manuais não-oficiais de reprodução de novos tipos de violência, o que mina não apenas essas ligações, como obviamente a sanidade de quem a dissemina. Meticulosamente Conferência disseca como esse legado do terror não tem trégua, e continua fazendo estragos contínuos pela vida afora, sem escolher intenções; mesmo as melhores, podem machucar e até destruir.

Esse processo de seviciar não apenas os personagens mas também o espectador, sempre utilizando o mínimo de recursos em cena, sem explicitar violências, sem esgarçar machucados até as raias da selvageria, são conseguidos com recursos inversos ao da agressão, na sua maioria. Na tentativa constante de criar uma estrutura de rememoração da tragédia para que a mesma não caia em um perigoso esquecimento, a irmã Natasha coloca também o público na pele dos personagens que ela “persegue”, nos tornando empáticos a todos. Na penúltima sequência de Conferência, quando seu núcleo parece enfim unido e ela simplesmente foge, percebemos que também pra ela lembrar é doloroso demais.

Um grande momento
As lágrimas da irmã

[10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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