Crítica | Cinema

A Cidade dos Abismos

Os marginais vivem

(Cidade dos Abismos, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Priscyla Bettim, Renato Coelho
  • Roteiro: Priscyla Bettim
  • Elenco: Verónica Valenttino, Sofia Riccardi, Carolina Castanho, Guylain Mukendi
  • Duração: 96 minutos

Quando um projeto abraça tão amorosamente uma ideia, quase fazendo dela uma causa própria, e reverberando imagens do passado que por muito tempo foram diminuídas, é difícil permanecer impune. A Cidade dos Abismos é, para onde se olha, um filme de estreia, mas que isso não seja associado a nervosismo, falta de destreza ou um certo amadorismo; o que exala fortemente do filme é paixão. Um daqueles sentimentos arrebatadores e inesquecíveis, que nos fazem perder a razão, que nos inebria e torna a visão turva, mas acima de tudo explode de verdade. Taí o lugar onde costuma estar a produção, vez por outra.

Priscyla Bettim e Renato Coelho vêm do curta metragem, de onde ganharam prêmios e notoriedade, mas sua estreia em longas apresenta uma carta de amor a um cinema e a um tempo que por si só já eram a epítome do conceito de “carta de amor”, a Belair e o cinema marginal. Poderia estar tudo em uma espécie de superfície amorosa e referencial, mas os diretores não apenas situam suas imagens em um contexto deslocado do tempo, como principalmente sua espinha dorsal, tais como seu texto, suas inserções políticas, seu deboche e sua crueza; a homenagem definitivamente não é passiva.

O envolvimento do corpo fílmico em um processo que remete fielmente aos longas produzidas em São Paulos nos anos 1970 vem de um processo de imersão dos realizadores que precisa da adesão absoluta do espectador, que não terá muitas oportunidades de ver algo parecido no cinema produzido hoje. É uma proposta de radical invenção que não se preocupa com rótulos ou convenções que predispuseram o cinema em uma caixa de um referendado “bom gosto”, do qual o filme não coaduna. Sua liberdade está em não corroborar narrativa ou esteticamente com uma ótica vigente do cinema de mercado, e abraçar um caminho alternativo para suas nuances.

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Esse caminho experimental abre oportunidades de questões menos tradicionais sejam colocadas sem pedir licença, tanto nos corpos de seus atores, quanto na ótica de seus personagens, quanto no selo de qualidade aplicado em cena, que aposta em uma rememoração de um apuro único do período debruçado. Na luz, na granulação, no despojamento de cenários e figurinos e na proposta que nega o naturalismo, A Cidade dos Abismos flerta com o noir e com o thriller urbano, mas sempre reconectando novas demandas a mistura, e isso encaixando suas necessidades a uma proposta que não só aceita como precisa desta atualização.

Em cena, prostitutas, transexuais, imigrantes africanos, drogados, ou seja, uma parcela de marginais sociais acaba se conectando após o assassinato de uma jovem que estava prestes a implantar silicone. Um trio improvável se une após o crime em busca de um alento em uma cidade que ainda rejeita e que guarda no silêncio da noite um consolo coletivo para almas solitárias. São tipo que vemos geralmente em estereótipos dramáticos ou cômicos, e que aqui abraçam uma artificialidade permitida pelo projeto, e assim consegue projetar sua voz em sons raramente alcançados.

Sua textura sem retoques, seja na desglamourização de seus tipos, nos diálogos dilacerantes trocados ou em uma despadronização de seus filtros, dá a A Cidade dos Abismos um caráter raro em um cinema massificado, mas que encontra em festivais como o Olhar de Cinema alternativas para a existência. A montagem febril de Caio Lazaneo e participações desconcertantes como a de Arrigo Barnabé (que também compôs a trilha) ajudam os autores a conceber em grau máximo uma ótica de produção que não existe mais – caso interessar, procurem por A Seita, de André Antonio, do coletivo Surto & Deslumbramento – mas que persiste, como seus personagens, em encontrar um lugar.

Um grande momento
“Meu sonho sempre foi fazer um filme de ação”

[10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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