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Contos da Lua Vaga

Impermanências

(雨月物語, JAP, 1953)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Kenji Mizoguchi
  • Roteiro: Hisakazu Tsuji, Matsutarô Kawaguchi, Yoshikata Yoda, Isamu Yoshii
  • Elenco: Masayuki Mori, Machiko Kyô, Kinuyo Tanaka, Mitsuko Mito, Eitarô Ozawa, Kikue Môri, Mitsusaburô Ramon, Sugisaku Aoyama
  • Duração: 93 minutos

Não tem outra forma de começar o texto de um filme dirigido por Kenji Mizoguchi sem fazer outra coisa que não pedir licença, quase como se entrássemos em um santuário. Alçado de maneira justa a um panteão daqueles dos autores inatingíveis, foram mais de 70 obras em pouco mais de três décadas de carreira, dono de uma reta final invejável. Em Contos da Lua Vaga, apenas três o separavam de sua passagem, e ele já investigava a ideia do renascimento longe da matéria. Como se ousasse pedir permissão aos deuses. Aos 58 anos já saía de cena, e esse título aqui foi uma das suas tentativas de elevar-se em vida, ao alcançar uma compreensão de transcendência, em narrativa e em realização. 

Mizoguchi olha para o plano de maneira completa e ampla, não apenas no que estamos focando o olhar agora, mas na sua totalidade, no que ainda vamos alcançar. Por isso sua câmera desliza de maneira tão natural por entre os espaços, desbravando o que ele já capturou antes e apresentando um material contínuo para nossa leitura. Não é apenas o que está em cena, mas o que ainda estará e o que já esteve; como se um plano scope tivesse uma continuidade livre, sem limites. Essa amplitude visionária, que tira o filme de um recorte específico dado pelo foco e o transfere para um extracampo que a qualquer momento fará parte do plano, torna sua obra ainda maior. 

Em Contos da Lua Vaga, esse entorno não-imagético imediato faz parte o tempo todo da narrativa, que não é definida pelo que estamos visionando no exato momento. Está em seu jogo um caminho que desbrave os cenários de maneira contínua, que não apenas estão em absoluta coordenação com o que é capturado, mas também pelo que ainda está por vir e pelo que já não está mais. Essa camada estética acompanha o desenvolvimento narrativo de um roteiro que não trata apenas do que existe de concreto agora, mas igualmente do que já foi carne e do que ainda é apenas ilusão, e se encontra em algum espaço de conexão entre os tempos. Estão em cena o agora da guerra, o ontem do espectro que retornou e o amanhã do desejo sonhado, os três combinados para constituir essa progressão sem descontinuação. 

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Ao propor um mergulho na história paralela de dois casais, Mizoguchi também está se embrenhando em quatro narrativas particulares diferentes, mas que caminham juntas – ao menos até certo ponto. A partir de determinado momento, essas quatro fatias de universo se espraiam para contar um microcosmos de um certo Japão, poderíamos dizer até atemporal. Uma versão romântica e apaixonada, um olhar para sua pegada tradicional trabalhista e ufanista, um lugar da tragédia exploratória onde o emocional se perde e, por último, as grandes perdas que o país sempre enfrentou. O filme se enreda narrativamente em torno desses quatro personagens, e os expande, como a debater um país. 

O diretor costura a fantasmagoria a esses elementos, e essas quatro personagens, de muitas formas acabam por esbarrar em um mundo que não existe mais, e foi relegado ao passado. São figuras que voltaram do além, ou grandes sonhos que se transformaram em pesadelos, ou a matéria que se voltou contra quem a perseguia, ou uma perseguição vã a um ideal de vida que não está mais válido. Cada um dos tipos dispostos em Contos das Lua Vaga já não caminha mais por seus próprios discursos, foram levados por uma torrente de embriaguez rumo à insanidade, causada por um pós-guerra que estava na tela e fora dela também. Mizoguchi soube filtrar o espírito de um tempo onde o horror ainda não havia sido incorporado à normalidade, e a herança nuclear era viva e pulsante. 

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Esse encontro entre uma narrativa que mapeia ideais japoneses e os confronta com o fracasso pessoal de cada um desses fundamentos, com uma direção que entende o espaço a ser explorado como de traço contínuo, acaba por posicionar a produção em óbvio lugar de elevação. Não tem a ver necessariamente com o que o tempo trouxe até Contos da Lua Vaga, mas principalmente com o que ele já era quando lançado. O impacto de uma produção tão carregada de símbolos, acerca de uma cultura que se refazia de mais uma destruição, é compreendido por um diretor que estava em posse segura de seus melhores elementos para ocupar um espaço singular na História. Daqueles onde não conseguimos separar a arte do que estava em discussão social, naquele momento. 

Há uma linha que conecta, então, todos os olhares na direção de Contos da Lua Vaga. Sua ambição estética nunca deixa de ficar clara, mas o que seu autor proporciona ao espectador é de valor igualitário ao que ele busca, ou ainda maior. Sua busca vai continuamente na direção de ampliar o jogo cênico por meio de sua câmera, do que captura e o que está traduzindo com sua história de fantasmas, ganância, paixão e desilusão. Como se transmitisse essa linha invisível indo na direção ininterrupta da História, que é assombrada ao mesmo tempo em que é vivida, Mizoguchi nunca interrompe seus planos se não for para dar abraçar outro gomo do Japão. A cada novo encontro com um diferente ponto dessa história, seus personagens estão mais desenvolvidos, mais imersos no país e indissociáveis a tudo que aconteceu com ele. 

Olhar de longe o trabalho de Mizoguchi, com o advento do tempo assolando, sempre pareceu estar diante de um recorte especial da história de seu povo e de sua terra. Aqui, ainda mais agudo me parece o encontro, porque seus quatro protagonistas se vestem de nação para reverberar o tanto que sua terra representa, em destruição e reconstrução, em vida e morte. Do encontro entre a História e sua história, nasce essa conjugação de olhos em constante movimento, como no fluxo de uma vida que se entende ininterrupta. Existe o que é físico e o que, por enquanto, está imaterial. Esse fluxo sem interrupção, do plano e da existência, é a chave para adentrar não apenas Contos da Lua Vaga, mas os códigos que Mizoguchi divide com seu espectador, em sua obra. 

Um grande momento
O reencontro entre Tobei e Ohama

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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