Crítica | Streaming e VoD

Crip Camp: Revolução pela Inclusão

Aleijados e empoderados

(Crip Camp, EUA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: James Lebrecht, Nicole Newnham
  • Roteiro: James Lebrecht, Nicole Newnham
  • Duração: 106 minutos

Acessibilidade combina com liberdade. No começo dos anos 70, os verões paz e amor prosseguiam nos Estados Unidos e bem próximo da fazenda onde ocorrerá o histórico Woodstock, o acampamento Jened também fez história ao promover inclusão para dezenas de pessoas com deficiências – física e intelectual.

O documentário Crip Camp é mais uma produção da Netflix por meio da parceria com o casal Obama, oscarizados pelo quadradíssimo Indústria Americana e que agora tentam novamente amealhar a estatueta na categoria. Tirando o foco da política norte americana envolvendo a manutenção da economia enquanto lidava com conflitos migratórios, essa produção fala de direitos fundamentais das pessoas humanas, costurando a narrativa a partir da experiência coletiva e como que ela transformou essencialmente três indivíduos: Judy, Jimmy e Kitty (além de Steve e Nanci, já falecidos, que aparecem apenas em imagens de arquivo).

Crip Camp

Os ex-campistas recontam suas memórias e são levados pelos diretores Nicole Newnham e James Lebrecht até o local onde funcionava o acampamento, que fechou em 1977 por dificuldades financeiras. A edição, em especial, é a alma desse documentário expositivo que, a partir de um vasto material de arquivo comentado pelos personagens, traz o clima de diversidade, igualdade e transgressão juvenil que permeava Jened.

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Pena que Crip Camp passa pouco menos de dois terços da sua duração recontando a experiência profunda dos campistas, monitores (como Pat Figueroa, responsável por alguns dos momentos mais espirituosos) e outros participantes, preferindo focar em como os personagens selecionados, descobriram sua força para integrar o movimento civil que lutaria contra o presidente Nixon e seus asseclas pela Lei da Reabilitação — a seção 504 — que proteger os direitos de indivíduos com deficiência em programas e atividades que recebem assistência financeira federal e resguardaria a acessibilidade a todos os espaços, acabando com a segregação nas escolas.

Crip Camp

O problema é que, apesar da potência do tema, a narrativa não tem muita aderência seja pela falta de inventividade na forma ou pelo pragmatismo aplicado na tentativa de seguir todos os eventos que desembocaram na criação da legislação para pessoas com deficiência existente hoje. Fundadora da Disable in Action e ex-consultora do governo norte-americano, Judy Heumann é a personagem mais heróica de Crip Camp e sentiu na pele a dor do preconceito quando, desde pequena, foi obrigada a estudar nos porões da escola, apartada das crianças ditas “normais”.

Ela relembra com leveza as sessões de namoro que aconteciam no acampamento, quando Jimmy inclusive conheceu Nanci, sua primeira namorada, companheira de quarto de Judy em Berkley. Didático, Crip Camp apenas dá uma leve ‘nuançada’ na biografia de seus entrevistados e transita entre Nova York, São Francisco e Washington historiografando os passos do movimento — mas dando os passos ao invés de documentar a vivência dos personagens como testemunha oculares e de que forma foram afetados e afetaram as lutas pelo direito de existir sem serem escondidos no porão.

“Se você não se respeita e não exige o que quer ninguém irá ouvi-lo “

Porque por mais que a história em si cale fundo, o filme não refrata a dor e a alegria dos campistas. O horror de lugares como o Willowbrook State School, que poderia ser um contraponto forte ao caráter plural, inclusivo e revolucionário do acampamento Jened, se torna uma simples menção. E muitas frases emblemáticas, como a de Jimmy: “Você pode aprovar uma lei mas até atingir uma mudança de atitude na sociedade ela pouco significará”, flutuam em meio a um discurso fílmico pouco contundente.

Ainda assim, Crip Camp sustenta boas sequências como o grupo que, representando mais de 40 milhões de deficientes, foi rastejando até o Capitólio protestar e exigir a criação e aplicação de uma legislação específica que os tornassem iguais. Ou a história do casal que se conheceu no acampamento, Kitty e Peter, ambos com paralisia cerebral, que tiveram filhos e se recusam a serem tratados como ‘diferentes’, e ainda o relato emotivo da filha de Steve, que descobriu a si próprio no acampamento e dizia que se pessoas com deficiência tivessem a natureza passiva seria o mesmo que serem sentenciadas à morte.

Talvez o papel que quisessem cumprir os produtores desse documentário e todos os envolvidos era trazer à pauta de discussão a questão social dos direitos das pessoas com deficiência. Falando sobre o filme para o USA Today, Judy se diz maravilhada após 40 anos de militância em ver que as pessoas assistem e se interessam genuinamente por conhecer o movimento: “Crip Cramp tem habilitado nossas vozes, fazendo com que sejam finalmente ouvidas.”

Porém poderia ser muito bem uma reportagem televisiva, um documentário jornalístico sendo exibido numa data comemorativa e especial para o movimento. Pena. Porque a sensação que fica é que o acampamento Jened era uma ideia que floresceu no coração de cada um que lá esteve e os fez enfrentar o mundo, ter coragem de amar, estudar, trabalhar, lutar e viver. Pena que esse “solo sagrado” como diz Peter, não se solidifica como a essência de Crip Camp na prática.

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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