Crítica | CinemaDestaque

Crônicas do Irã

O poder de distorcer a retórica

(آیه‌های زمینی, IRÃ, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Ali Asgari, Alireza Khatami
  • Roteiro: Ali Asgari, Alireza Khatami
  • Elenco: Faezeh Rad, Hossein Soleimani, Majid Salehi, Sadaf Asgari, Arghavan Shabani, Sarvin Zabetian, Farzin Mohades, Gohar Kheirandish
  • Duração: 75 minutos

Durante pouco mais de uma hora, um grupo de historinhas desenvolvidas com a mesma linha de decupagem, tenta radiografar as contradições que se entrecruzam em uma realidade tão complexa quanto a iraniana. Tudo poderia ser muito simples, e a realização até pode ter sido do ponto de vista de seu desenvolvimento estético, mas Crônicas do Irã abre sua voz para discutir as entrelinhas de discursos que podem ser tratados de forma leviana por um grupo de pessoas, geralmente que têm algum poder sobre os outros. A partir da segunda história, é fácil imaginar que tudo já estará visto e apenas uma repetição se dará dali pra frente. O resultado é uma analogia dolorosa sobre os mecanismos de dominação sobre um povo de liberdade tão restrita. 

O filme é escrito e dirigido pela dupla Ali Asgari e Alireza Khatami, que estão em seu segundo longa-metragem, exibido com sucesso ano passado na Un Certain Regard do Festival de Cannes. Crônicas do Irã é uma experiência de observação rica sobre o grupo de pessoas que é filmado, quase todos em situação de interrogatório, e com o mesmo escopo de apresentação. São filmados em primeira pessoa, e respondem a interlocutores não mostrados, mas que exercem posição de autoridade sobre eles. Na segunda passagem, o esquema muda um pouco, e é justamente nela que percebemos que sua estrutura será replicada adiante, com poucas alterações – a maior delas nessa mesmo, que tem mais elementos que as demais. 

Em todas, uma mesma dinâmica se impõe: o personagem em foco desconhece os motivos pelo qual seus questionamentos são encarados como uma imposição intolerante, quando a verdadeira intolerância e imposição não é vista. Nessa decisão, o esquema escolhido para a mise-en-scene de Crônicas do Irã não somente é eficaz, como representa um caminho de pensamento que é perpetrado por quem não tem razão. Sempre responder uma questão com uma nova questão, tentando confundir o personagem central. Todas as situações partem do princípio de acusar quem está em desvantagem de algo absurdo, e controlar o espaço mostrado com uma sutileza inicial, que vai sendo colocada para trás à medida que tais efeitos não surtem o resultado esperado. 

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Tais demonstrações de poder são conseguidas a partir de objetos não explícitos de seus propósitos e de origens diversas, como um copo de suco em cima de uma mesa, ou uma projeção que cresça sua imagem sobre o personagem inquirido, ou o acréscimo de elementos cênicos em profusão sobre um corpo. Em determinado momento, uma mão insidiosa invade o plano, em um dos momentos de maior angústia de Crônicas do Irã, que de maneira explícita tenta mostrar sua capacidade de dominação. Não é um espaço de controle fácil, mas o filme consegue com o mínimo de recursos explorar as discussões acerca dos controles narrativos, escapando inclusive do campo político que um filme como esse representa para seu país de origem. 

O cerceamento da liberdade feminina está na maior parte das histórias, mesmo quando a mulher não está na cena, como no primeiro episódio. A tentativa tenra de controlar o que é indomável, maneiras diversas de normatizar atitudes e comportamentos como reféns de códigos de gênero antiquados, o bom e velho assédio sexual em ambiente de trabalho: pouco passa impune por Crônicas do Irã. Além do que se vê, temos ainda o que está fora do plano e que pode facilmente perder a identidade, ou simplesmente não tê-la; a repressão não precisa de um rosto que a represente, ela simplesmente pode determinar ou não um futuro, um destino, uma jornada. Em muitos casos, podemos observar a simples falta de vontade de compreender e empatizar com a situação do outro. 

Aos poucos, é como se todas as histórias contadas no filme simbolizassem um mesmo combo de situações-limite envolvendo o Poder, sua manutenção e o absurdo constante que é manter sob júdice quem não detém algum alcance. Para o lugar de onde veio, Crônicas do Irã representa uma crítica às instituições que não dialogam com quem precisam delas; do Ocidente, o filme é observado sob a égide de qualquer encontro onde alguém exerça sua retórica para criar cortinas de fumaça em diálogos. A aparência simples de uma relação não apaga o horror que existe por trás de muitas delas. 

Um grande momento

Faezeh

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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