Crítica | Festival

Dalva

Sobrevivendo

(Dalva, FRA, BEL, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Emmanuelle Nicot
  • Roteiro: Emmanuelle Nicot
  • Elenco: Zelda Samson, Alexis Manenti, Fanta Guirassi, Marie Denarnaud, Maia Sandoz, Jean-Louis Coulloc'h, Charlie Drach
  • Duração: 80 minutos

A sequência inicial de Dalva nos remete imediatamente a Custódia, sucesso francês de três anos atrás, um drama familiar pesado que se assemelhava a um filme de terror com o avançar da história. Aqui nessa produção passada em mostra paralela do Festival de Cannes desse ano, esse é o registro da abertura, um clima de desespero, angústia e horror absoluto, em meio a gritaria descontrolada. Câmera raivosa não nos deixa conectar imageticamente com um propósito, tudo é um borrão tenso que deixa claro em menos de 5 minutos uma pequena fração do que virá. Comprando ou não a naturalidade com que os eventos se desenrolarão, é impossível ficar indiferente à protagonista, sua argumentação e a forma com que essa desconstrução será dolorosa para todos os envolvidos. 

Aos poucos o filme vai se conectando a outros títulos recentes para chegar em uma história muito séria e muito complexa sobre abuso sexual, pedofilia, incesto, cárcere privado, e muitos outros etcs. A diretora e roteirista Emmanuelle Nicot é corajosa em encenar esse imenso circo de horrores, que consegue escapar a todas as chances de se encarcerar em um projeto de melodrama, ou mesmo carregar nas tintas do que contar. Prefere carregar em outro quesito, a fôrma com que é moldada a própria Dalva, personagem-título, que se apresenta tão segura de si do ato de seus 12 anos de idade, que o filme congela à sua presença. É uma obra de observação contínua, que revela também o talento de sua realizadora, que faz de tudo para sua obra não seja estereotipada. 

A impressão que temos é de que Dalva é uma obra do avesso, quase como um Irreversível sem o caráter terrível. A personagem que se apresenta a princípio é uma mulher de meia idade, no corpo de uma criança. Vestida como uma senhora, falando também como uma, Dalva é quase assustadora, pelo anacronismo ambulante. Decidida, atrevida, arrogante, dona de uma personalidade abominável, a protagonista chega ao fim da jornada uns 40 anos mais jovem, no mínimo; enfim, uma criança. Brincando pelo quintal, fazendo amigos, até eventualmente sorrindo, Dalva se redescobre em cena, na sua relação com os outros, mas principalmente consigo mesma. O filme acompanha essa “mutação”, permitindo o desabrochar da personagem, que termina o filme verdadeiramente com 12 anos. 

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Dalva
Cortesia Mostra SP

A defesa de Dalva do homem que a violentou de todas as formas é impressionante, e Dalva se mostra muito mais corajoso do que imaginaríamos que seria. Coragem principalmente ao colocar o amor incondicional que a personagem diz sentir em uma redoma de entendimento, para que não fique esperando a morte chegar. O filme se predispõe a ouvir cada versão apresentada pela menina, que protege um monstro por construção do próprio. Muito vagarosamente, Dalva se vê submersa a tentar enfim entender sua história, que revela uma grande maturidade para a personagem. Ao sair do campo da dominação que a transformara em um robô, o roteiro começa a acompanhar essa lenta costura a respeito de sua protagonista. 

Espécie de ‘coming of age’ e estudo de personagem ao mesmo tempo, Dalva não poupa o espectador de reflexão. Afinal, estamos falando de uma relação entre pai e filha que é defendida pela filha como uma forma de amor possível. Nicot obviamente não compra a versão de Dalva, mas o filme demonstra onde essa protagonista vai parar, logo se vendo envolvida com uma realidade que ela nem mensurava. Aos poucos, vemos voltar à personagem uma leveza infantil, que vai sendo demonstrada com uma senhora que entende pouco do mundo. Nesse sentido, o filme avança mais que Transtorno Explosivo, que é um belo filme sobre uma personalidade igualmente desajustada. O descontrole de Dalva parece bem mais crível.

Pra finalizar, como é feliz ver Zelda Samson dominando cada linha narrativa em sua estreia no cinema. E não é apenas o caso de assistir a uma jovem atriz se revelando, porque Dalva não é um projeto qualquer. De profunda dificuldade emocional, e com um sem número de citações chocantes, a personagem nos transmite um manancial de informações rapidamente, como uma fera enjaulada sem entender o motivo da captura. Sua entrega para Dalva é comovente de verdade, colocando o projeto longe do sensacionalismo. Na verdade, trata-se de uma busca desconcertante por ser amada de verdade, uma busca por um afeto que não venha enlameado. São Nicot e Samson, uma dupla de estreantes que precisa ser apreciada, ainda que o peso do projeto o coloque em posição delicada. 

Um grande momento
O encontro com o pai na cadeia

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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