- Gênero: Drama
- Direção: Maureen Fazendeiro, Miguel Gomes
- Roteiro: Maureen Fazendeiro, Miguel Gomes, Mariana Ricardo
- Elenco: Crista Alfaiate, Carloto Cotta, João Nunes Monteiro
- Duração: 102 minutos
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Primeiro plano. Os três atores dançam em uma sala, a música e estética não remetem aos anos 1980 – eles são absolutamente anos 1980. Uma dance music com sintetizadores pra marcar a trilha, figurino da época, iluminação condizente ao período, imagem toda granulada e fosca. O que isso significa para a compreensão do todo? Essa abertura em Diários de Otsoga define um olhar para o artificial que rapidamente se instaura no projeto como sua bússola. Apesar do abraço ao naturalismo na narrativa que se desenvolve, o filme já nessa abertura, que pode soar descolada, garante um apreço pela quebra estrutural cheia de organicidade.
Miguel Gomes, o diretor de obras contemporâneas tão essenciais, como Tabu, As Mil e uma Noites e Aquele Querido Mês de Agosto, assume um projeto co-assinado por sua parceira Maureen Fazendeiro, e ambos desafiam normas tradicionais de construção narrativa, e como o melhor cinema português atual tem feito, emprega essas decisões na moldura de um projeto que não tem qualquer interesse em repisar um olhar estabelecido para o cinema. Essa já é a mola com a qual ele têm trabalhado em sua filmografia, aqui ganhando contornos que apontam tanto uma radicalidade de proposta quanto uma doçura de abordagem de seus elementos humanos.
![Diários de Otsoga](https://cenasdecinema.com/wp-content/uploads/2021/10/Diarios-de-otsoga_interno2.png)
Em cena, Cristina Alfaiate, Carloto Cotta e João Monteiro são essa tríade de amigos em uma bucólica casa de campo, prospectando sonhos e alicerçando experiências diversas, de maneira livre. Muito rapidamente, no entanto, essa estrutura é rompida em prol da quebra não apenas da quarta, mas de todas as paredes. Ao revelar os processos de construção de seus atores, de seus realizadores, e incluir pautas do nosso tempo em uma ideia de risco, Gomes e Fazendeiro assumem a honestidade para o espectador, e tentam trazer suas vontades para o enxuto elenco, que reage com um misto de espanto e letargia.
Há quem possa acusar os autores de não alavancar nada novo em sua criação e que seu longa já tenha sido texturizado anteriormente em outras paragens, a abordagem que eles aplicam aqui une todos os esquemas de produção ambicionando uma outra natureza de performance e do artifício, segmentando o olhar que o documentário costuma lançar sobre suas imagens. O que sua proposta abarca é a da performance além do que se entende como tal, reverberando o ato de se portar na frente de uma câmera já como uma representação; o corpo do ator já atento para a performance, seja em qual for sua leitura.
![Diários de Otsoga](https://cenasdecinema.com/wp-content/uploads/2021/10/Diarios-de-Otsoga_interno1.png)
O jogo que é difundido em Diários de Otsoga não é o mais simples para esse tipo de esvolha narrativa. Não se trata apenas de transformar a ficção em realidade e vice versa; o que Gomes e Fazendeiro propõem é uma provocação que inclua todo o grupo de profissionais envolvidos na produção, chacoalhar seus papéis sociais e tirar da lupa uma nova configuração de suas funções. Carloto, Cristiana e João são apenas a porta de entrada mais óbvia para observação visual dos códigos ali descentralizados. Através dessa reorganização, tudo que é enfatizado, seja imagético ou verbal, muda de espaço cênico. Atores que são cenógrafos, diretores que são atores, e daí para expandir cada papel e integrar suas porções a uma ideia diferente de encenação, deflagrando o artifício do acesso.
O embaralhamento acerca do que é documento e o que é lirismo deixa Diários de Otsoga como mais uma voz contra a ditadura do real, que rege o cinema naturalista e não necessariamente o melhora ou certifica. É como um caminho que precisa ser aberto que embace ainda mais fronteiras que não precisam ser definidas. Que esse resultado seja alcançado inclusive discutindo a covid, o machismo, as Inter relações de poder nos espaços hegemônicos, só transforma a experiência filmica de Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro em mais um produto de excelência comprovada e definição difusa, como o grande cinema que tradicionalmente têm vindo de Portugal.
Um grande momento
“Eu não vou beijar”