Direito em Cenas

Direito em Cenas: 365 Dias

Em um País onde um “comediante” famoso entra em um reallity show e diz que jamais dormiria na mesma cama que duas mulheres, porque seria obrigado a “tocar a flauta” (leia-se: se masturbar) enquanto elas dormem, é imperioso tratar sobre a cultura do estupro e sobre a forma velada que ela toma para se perpetutar por várias gerações. É assim que eu começo o texto de hoje, antes de mesmo de apresentar a introdução do longa a ser debatido.

No Brasil, 97% das mulheres que usam transporte (público ou particular) foram vítimas de assédio, enquanto estima-se que 42% das mulheres brasileiras, de forma geral, já foram vítimas de alguma espécie de assédio sexual ao longo da vida e, mesmo assim, importamos filmes com mensagens pró-estupro, e admitimos que pessoas falem abertamente, em tom jocoso, sobre a forma que consumariam um atentado à dignidade sexual de mulheres que, dormindo, não ofereceriam resistência.

365 Dias em questão, baseado no livro de uma autora mulher (pasmem), Blanka Lipińska, é co-dirigido também por uma mulher, Barbara Białowąs (o que comprova que o machismo é estrutural, e não afeta somente os homens), e conta a história de Don Massimo Torricelli (Michele Morrone), um mafioso extremamente bonito, sexy e rico, que, após ter um sonho em uma experiência de quase morte, fica completamente aficcionado pela possibilidade de conquistar a mulher que para ele apareceu durante seu período desacordado.

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Após a longa busca pela mulher de seus sonhos, Don Massimo encontra Laura Biel (Anna-Maria Sieklucka), quem ele sequestra e mantém em cárcere privado, ao argumento de que somente a deixará ser livre se, após passar 365 dias com ele, ela não se apaixonar, como ele se apaixonou por ela.

365 Dias

Apesar de algumas pouquíssimas falas empoderadas da protagonista, o filme se desenrola da forma mais misógina possível, com cenas de humilhação e objetificação da mulher, atreladas a crimes que são cometidos pouco a pouco contra sua liberdade pessoal, sua dignidade sexual, dignidade da pessoa humana e sua integridade psicológica, mas que se perdem na trama, que os traveste de erotismo e sensualidade.

Ao longo de 365 Dias, a protagonista, então, resolve provocar o próprio algoz sexualmente, como se brincasse de fazer um jogo de sedução com ele, até ela ser assediada em uma festa, por outro homem, ele defendê-la e, finalmente, em mais um golpe machista do filme, ela se entregar sexualmente a seu sequestrador, afinal, ele a salvou de uma situação em que, em primeiro lugar, ela sequer estaria, se não tivesse sido sequestrada por um predador sexual.

Como, contudo, o enredo de 365 Dias é todo atrelado à sensualidade do protagonista, passa completamente despercebido o fato de ele ser um criminoso, mafioso, e mais ainda o fato de ele cometer crimes contra a liberdade, dignidade sexual e integridade física e emocional da personagem mulher, afinal, se ela se entrega no final, nada disso tem problema, não é mesmo?

Eis que urge a necessidade e urgência de falarmos da cultura do estupro: uma cultura presente não só no Brasil – o que pode ser facilmente verificado pela origem de 365 Dias e do livro poloneses -, mas que se perpetua em várias sociedades, há milhares de anos, como consequência do patriarcado extremo que esses países adotaram.

A cultura do estupro significa que atentados contra a dignidade e liberdade sexual dos indivíduos podem ser consumados, desde que haja uma aprovação social dessas violências.

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Nessa cultura, uma mulher que se embriaga sozinha na noite, por não respeitar as “morais” da sociedade patriarcal, pode ser estuprada; um homem que comete atrocidades, por violar as “regras morais” da sociedade patriarcal, merece ser preso e estuprado – porque o estupro masculino é atrelado à perda de virilidade e, portanto, ele seria “menos homem” e não voltaria a cometer crimes -; a mulher solteira que anda sozinha na rua, por ter comportamento “amoral” ao romper com padrões da sociedade machista, merece ser estuprada, e assim por diante.

Nesse tipo de cenário, não apenas o estupro, mas vários outros delitos menores passam a ser tolerados por essa sociedade que apregoa tal cultura, afinal, se a própria consumação do sexo não consensual é permitida por uma sociedade, como forma de “punição” e “correição” de comportamentos imorais e anti-patriarcais, muito mais bem aceitos serão aqueles delitos que não chegam a, de fato, consumar a conjunção carnal.

É assim que aparece uma sociedade cheia de assédios sexuais, consumados por desconhecidos, parentes próximos, amigos, conhecidos, colegas de trabalho, superiores hierárquicos, que se sentem legitimados pelo discurso de que, se até mesmo a violência mor (o estupro) pode ser consumada, por que não se poderia “tocar uma flauta” e gozar em uma mulher desacordada?

Para além da consumação dos crimes supramencionados, que são cometidos não apenas contra mulheres, mas também homens, crianças e idosos, que são vitimizados por essa mesma cultura do estupro, estão também presentes a inércia do sistema estatal de proteção às vítimas e a omissão dessas vítimas de exporem os crimes contra si praticados: afinal, se você é ensinada que “foi assediada ou estuprada, porque teve um comportamento imoral”, denunciar a prática de tais crimes contra si importaria em assumir, necessariamente, que você é imoral.

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A cultura, portanto, se perpetua, criando formas diferentes, a cada ano que passa, porque alguns movimentos de militância (aqui estou falando de militância verdadeira: que ouve e apoia as vítimas, não de “militância” seletiva, para se divulgar e, logo em seguida, ter comportamentos contrários à própria bandeira) conseguem abordar o assunto de maneira tal que os opressores precisam se reinventar para continuar conseguindo oprimir e violar sexualmente suas vítimas.

Nesse sentido, a cultura do estupro ganha roupagens distintas: num primeiro momento, era fácil um algoz estuprar, abusar e assediar sua vítima, posto que sabia ter o consentimento e a conivência da sociedade, sem nem mesmo precisar se defender; depois de alguns discursos iniciais sobre a cultura do estupro, esse mesmo algoz se viu passando a ter que justificar seus crimes, deslegitimando as condutas morais da vítima; a seguir, além de justificar seus crimes, o algoz se viu tendo a obrigação de trazer pessoas para o seu lado, fazendo piada com a situação, para dar a entender que “você faria o mesmo no meu lugar”, e assim vão se criando novas roupagens à cultura que mais violenta mulheres e homens nesse País.

Estando agora nessa fase de fazer piadas, e tentar normalizar os atentados contra a dignidade sexual, como se fossem coisas que qualquer um faria, a arte machista cresce e toma espaço, criando um enredo que romantiza o crime de sequestro e cárcere privado, além de erotizar os atentados à liberdade e dignidade sexual da mulher, com cenas de sexo quase explícito, que podem ser capazes de deixar o espectador sexualmente excitado e, portanto, em dúvida se a conduta é mesmo criminosa, afinal “ele faria o mesmo, se pudesse”.

Ao longo da trama, verifica-se uma série de padrões machistas, do homem que pode estuprar mulheres que trabalham para ele; do homem que leva a mulher às compras, fica entediado enquanto ela é fútil e compra roupas; do homem como provedor; da mulher tendo que ser salva; da mulher que, enquanto empoderada, é sensual onde bem queira, e após ser “domada” por seu opressor, se torna sexy e sensual somente para ele; da mulher que quer satisfazer sexualmente o homem viciado em sexo com quem ela se relaciona; e etc.

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Todos esses padrões vão levando o espectador, que já está inserido em uma cultura do estupro, a se identificar com o algoz, passando não a desejar sua punição, mas a querer ser como ele, tanto no quesito financeiro, quanto no físico e no sexual, daí essas pessoas que se identificam com o abusador, passam a legitimar suas condutas mais pífias, como a de sequestrar uma mulher, mantê-la em cárcere e obrigá-la a assisti-lo tendo relações sexuais com outras mulheres.

No mesmo caminho, 365 Dias também leva as pessoas a se identificarem com a vítima, que começa o filme sendo retratada como uma mulher grandiosa em seu trabalho, invejada por seus colegas, empoderada, desprendida de seu relacionamento, que se apaixona e se encanta pelo homem que a salva, quando ela é vítima de um assédio machista em uma festa (desconsiderando por completo o fato de ela já estar sendo vítima de inúmeros assédios perpetrados por quem a salvou nessa tal festa), causando, portanto, a sensação ao público de que “você pode ser empoderada(o), mas um dia irá necessitar de uma figura viril para salvá-la(o)”.

A partir dessa conexão absurda do público com os personagens, 365 Dias nem mesmo tenta disfarçar o cometimento de inúmeros crimes por parte do protagonista contra a protagonista, deixando clara a intenção de demonstrar ao público que, uma vez que se conectaram com os personagens, eles têm que passar a pensar como ambos: aqueles que desejaram ser o algoz, aceitam e dizem que fariam o mesmo que o abusador, portanto não o criticam; aqueles que se identificaram com a vítima aceitam tudo que contra ela é cometido, afinal, ela está feliz e sexualmente satisfeita naquele enredo absurdo das telonas.

Evidencia-se, portanto, mais uma forma de perpetuação da cultura do estupro, através da conexão sexual entre a arte e as pessoas da vida real, sempre em busca da frase “eu faria o mesmo”, que, hoje, é o que mais buscam aqueles que desejam a manutenção da cultura do estupro, para que possam continuar estuprando pessoas na rua ou em casa, ou atentando contra suas dignidades sexuais, enquanto elas dormem em um reallity show, ou enquanto elas tentam viver suas vidas, pegando, por exemplo, um transporte público.

(365 dni, POL, 2020, 114 min.)
Drama | Direção: Barbara Bialowas, Tomasz Mandes | Roteiro: Chinonye Chukwu| Elenco: Anna Maria Sieklucka, Michele Morrone, Bronislaw Wroclawski, Otar Saralidze, Magdalena Lamparska, Natasza Urbanska, Grazyna Szapolowska, Tomasz Stockinger, Gianni Parisi, Mateusz Lasowski

Daniela Strieder

Advogada e ioguim, Daniela está sempre com a cabeça nas nuvens, criando e inventando histórias, mas não deixa de ter os pés na terra. Fã de cinema desde pequenina, tem um fraco por trilhas sonoras.
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