A Juíza é um documentário que retrata a história de Ruth Bader Ginsburg, a segunda juíza mulher da Suprema Corte dos Estados Unidos, que revolucionou a história do Direito com seus ideais feministas, em prol da luta pela igualdade de gênero e consequente rompimento dos resquícios do patriarcado.
Não há grandes coisas a se acrescer à história de Ruth, afora a gratidão que nós, mulheres, temos que ter por alguém que lutou tanto pelo reconhecimento dos direitos das mulheres, para que nossas gerações pudessem crescer, trabalhar, ter momentos de lazer, tal qual os homens.
Apesar de Ruth ter atuado apenas nos Estados Unidos, criando importantíssimos precedentes perante a Suprema Corte norte-americana, é salutar dizermos aqui que mesmo precedentes criados em outros países, em várias medidas, acabam servindo de norte para a atuação das cortes brasileiras, daí porquê de ser tão importante que uma mulher tenha lutado por nossos direitos, ainda que em outro país.
Também é importante explicar que nos Estados Unidos vige o sistema do common law, isto é, ao invés de haver uma Constituição Federal com 250 artigos (sem contar atos de disposição transitória) e leis para regular as relações humanas na sociedade norte-americana, a Constituição Federal dos Estados Unidos é extremamente sucinta e as relações são norteadas pelas jurisprudências de cada estado e, principalmente, da Suprema Corte.
Em assim sendo, quando uma mulher ajuíza uma ação para reconhecer a inconstitucionalidade de uma segunda tenente da Força Aérea não receber auxílio-moradia, enquanto os homens recebem (primeira tese de Ruth perante a Suprema Corte, enquanto atuava como advogada, no caso Frontiero v. Richardson) é de suma importância para a alteração de todo o padrão social e jurídico daquele País.
Igualmente, ação que alegava a inconstitucionalidade de um pai não poder receber pensão, quando se torna viúvo, enquanto às mulheres isso é uma garantia (caso Weinberger v. Wiesenfeld); ou questionava uma lei federal que previa pensões diferentes a homens e a mulheres (caso Califano v. Goldfarb); ou questionava uma lei que prevê a possibilidade de mulheres pedirem dispensa de convocação ao júri (caso Edwards v. Healy) também serviam como uma construção de precedentes feministas.
Levando-se em conta, então, um sistema onde os precedentes têm força de lei, é de se compreender o porquê de Ruth Bader ter sido tão importante no reconhecimento, desenvolvimento e na garantia dos direitos das mulheres nos Estados Unidos, afinal, foi por causa de suas ações perante a Suprema Corte que começaram a questionar os malefícios do machismo, do patriarcado e da misoginia.
A atuação de Ruth, contudo, não se restringiu ao palanque de frente aos magistrados homens e brancos que compunham a cúpula da Suprema Corte, mas, ao revés, 10 de agosto de 1993, ela foi empossada como a 107ª juíza da Suprema Corte, indicada pelo então presidente Bill Clinton.
Nessa oportunidade, Ruth pode ir além em seus ideais, não apenas tentando apresentar teses à Suprema Corte, para que os juízes criassem novos precedentes, mas também mudando a forma de pensar de seus pares e sendo, ela mesma, a criadora dos novos precedentes feministas.
A visão de Ruth sempre foi liberal, mas nunca a mais liberal da Corte e, ainda assim, havia quem se surpreendesse com seus discursos tão arraigados no feminismo, que combatiam qualquer tipo de descriminação por gênero, e buscavam o reconhecimento de direitos básicos às mulheres, como, por exemplo, o direito de abortar.
Com a evolução da sociedade política norte-americana, contudo, Ruth começou a se ver em dificuldades para argumentar juridicamente com seus pares, uma vez que as eleições de Trump fizeram com que dois membros da Corte, que tinham se aposentado, fossem substituídos por outros ainda mais extremistas de direita, de modo que os votos de Ruth passaram a ser minoritários.
Mesmo não sendo acompanhada pela maioria de seus pares, Ruth não se deixou abater nem se viu desmotivada a continuar travando suas lutas pelos direitos das minorias e das mulheres, abrindo sempre votos dissidentes, para indicar a sua forma de pensar, ainda que a mesma não fosse suficiente para convencer os outros magistrados da Corte.
Em razão de sua combativa atuação na Suprema Corte, Ruth ganhou o reconhecimento dos jovens norte-americanos mais engajados politicamente, que se maravilharam com a forma que aquela pequena senhora batia de frente com o sistema e com as decisões dos próprios colegas, mesmo tendo ciência de que sua forma de pensar era minoritária.
Uma vez se tornando conhecida no mundo da internet, não demorou muito para que Ruth Bader se tornasse um verdadeiro ícone da resistência liberal, tendo sido representada em memes como The Notorious R.B.G., em referência ao rapper The Notorious B.I.G., brutalmente assassinado aos 24 anos, mas que também era um ícone e foi eleito o melhor rapper de todos os tempos pela Billiboard.
Ruth Bader, que sempre gostou do bom humor alheio, embora ela mesma tenha sido uma pessoa muito séria, aderiu aos memes, se identificando com a representação de The Notorious R.B.G. e chegou a enviar camisas para os amigos que estampavam sua foto com uma coroa na cabeça e a legenda Notorious R.B.G., enquanto continuava sua constante batalha na Suprema Corte.
Questionada algumas vezes se ela haveria se arrependido de não ter se aposentado quando o Presidente Obama pretendia indicar um magistrado ainda mais liberal para compor a Corte, Ruth sempre manteve o discurso de que enquanto tivesse disposição, trabalharia na Suprema Corte.
Assim foi seu legado, construindo uma sociedade mais justa, mais feminista, mais conhecedora das distinções de gênero e dos problemas causados por essa desigualdade, até 18 de setembro de 2020, quando Ruth faleceu devido a complicações de um câncer contra o qual lutava há algum tempo.
A ausência de Ruth na Suprema Corte, em um momento tão frágil e delicado como o de agora, com um presidente que flerta abertamente com o nazismo, é extremamente preocupante, uma vez que era dela o papel de criar dissidências para defender direitos relativos à igualdade de gênero, imigração, aborto e casamento homoafetivo, mas sem ela, qualquer outro juiz conservador pode e deve ser indicado, dificultando ainda mais a vida das minorias.
(RBG, EUA, 2018, 85 min.)
Documentário | Direção: Julie Cohen, Betsy West | Roteiro: Julie Cohen, Betsy West