Secreto e Proibido (A Secret Love) é um documentário dirigido por Chris Bolan, que conta a história de amor de Terry Donahue, uma ex-jogadora de beisebol feminino, e Pat Henschel, ex-jogadora de hockey e sua companheira de vida por 72 anos, duas idosas que, além de lutar contra a homofobia, têm de lidar com as dificuldades oriundas da idade já avançada.
O documentário inteiro é produzido de forma extremamente cautelosa, evidenciando o amor entre Pat e Terry, mostrando imagens antigas do casal e trechos das cartas enviadas entre elas, quando mais jovens, de modo a envolver, cativar e comover o público, permitindo que entendamos um pouco do amor existente entre as duas.
Assim como a maioria dos LGBTQI+, Teresa Donahue e Patrícia Henschel sofreram preconceitos durante sua fase jovem, o qual derivava tanto das pessoas de fora do relacionamento, quanto delas mesmas, conforme conta Terry, ao relatar que seu primeiro contato com o mundo gay foi por uma amiga, Betty, que contou sobre a existência de mulheres que se relacionavam com outras mulheres e isso deixou Terry assustada, sem nem saber o que pensar a respeito.
Depois de conhecer Pat, contudo, Terry deixou a homofobia de lado e se apaixonou perdidamente, tornando-se, justamente, o tipo de mulher que outrora ela tinha medo, quando apenas ouvia falar. Do outro lado da história, havia Pat, que não traz qualquer parente a A Secret Love, porque sofreu na pele a renegação de seu único irmão vivo, e explicou que sua família inteira jamais a aceitaria.
Além da história de amor e de demonstrar as relações familiares de Terry com seus sobrinhos, que lhe acolheram, e destes com Pat, A Secret Love ainda evidencia que os amigos LGBTQI+ – os quais sofrem os mesmos preconceitos, passam pelos mesmos dilemas e superam os mesmos obstáculos que as protagonistas – são importantíssimos nas vidas delas, sendo uma verdadeira segunda família, da qual a família de sangue sequer tem conhecimento.
A delicadeza do documentário em relatar a vida de um casal homoafetivo idoso nos mostra a importância do amor na vida das pessoas, independentemente de esse amor vir da família ou de amigos, desde que seja um amor sincero, respeitoso e que não condene a orientação sexual da pessoa amada.
Para além da história do relacionamento deste fofo casal de idosas, A Secret Love traz à tona o desenvolvimento do direito da comunidade LGBTQI+, contando sobre os maus-bocados que essas pessoas passavam nos anos 50, em Chicago, onde as pessoas da comunidade gay eram perseguidas, como verdadeiras criminosas, por simplesmente quererem amar livremente e frequentarem locais públicos sem fingir serem o que não eram.
Nos anos 50, movidas pelos ensinamentos bíblicos, as pessoas condenavam qualquer tipo de relacionamento que não seguisse os padrões heteronormativos impostos pela religião cristã e pela própria sociedade, que se desenvolveu balizando-se nos dogmas da religião (especialmente católica).
Em razão disso, por muito tempo, além de a homossexualidade ter sido considerada imoral e criminosa, também foi descrita como uma doença mental, listada pela Organização Mundial da Saúde na Classificação Internacional de Doenças, em 1977, o que só foi revisto em 1990, ano em que a homossexualidade passou a ser vista como orientação sexual, e não como uma patologia.
Antes dessa alteração, contudo, muitas foram as vítimas dos abusos policiais e estatais, e das perseguições sociais, conforme brevemente é relatado no filme: a homofobia estrutural era tanta, que as mulheres jogadoras de baseball deveriam vestir saias, não importa o quanto isso lhes causasse danos (os ralados nas coxas eram inevitáveis) ou fosse desconfortável, tudo porque “um ralado é melhor do que uma mulher de calças”; mulheres que vestiam calças com zíper eram presas, por tentar parecer homens; homens que vestissem saias ou saltos altos, além de serem considerados aberrações, eram presos por tentar parecerem mulheres.
Nesta sociedade primitiva, o conceito de não binário, assexuado, homossexual, pansexual, bissexual ou transgênero sequer era discutido, afinal, qualquer coisa que fugisse do padrão heteronormativo deveria ser considerado uma patologia, uma imoralidade ou um crime, não havendo razão para tentar compreender o comportamento desviado, afinal, prender é mais fácil do que compreender.
Os bares e pubs voltados ao público LGBTQI+, que, de alguma forma, respeitavam e permitiam a presença dessa clientela, eram perseguidos e rechaçados, razão pela qual se tornaram constantes alvos de batidas policiais, com a simples intenção de prender toda a comunidade gay que estivesse presente no estabelecimento, bem como seus proprietários.
Contudo, em 28 de junho de 1969, houve a conhecida Rebelião de Stonewall, quando, durante uma batida policial no bar Stonewall Inn, que visava prender homossexuais, travestis e drag queens, os perseguidos se revoltaram, os oficiais perderam o controle da situação e se formou uma multidão ao redor, incitada à revolta.
As tensões entre a polícia e os moradores LGBTQI+ e simpatizantes de Greenwich Village acarretaram protestos, no próprio dia 28/06 e em noites seguintes, de modo que, dentro de poucas semanas, os moradores do bairro haviam se organizado em grupos de ativistas para reunir esforços, a fim de garantir a existência de estabelecimentos em que a comunidade LGBTQI+ pudesse se encontrar e se divertir, sem medo de ser presa ou morta.
Por tal razão, o dia 28/06 ficou marcado como uma data importante para a comunidade gay e se tornou o dia da primeira parada gay em Nova York, Los Angeles, Chicago e São Francisco, em 1970. Hoje, nesta data, é comemorado o Dia do Orgulho Gay.
Apesar da existência de paradas gays e resistência dos LGBTQI+ aos abusos estatais e investidas criminosas contra suas existências, a OMS listou a homossexualidade como patologia em 1977, o que se manteve uma realidade até 17 de maio de 1990, quando, finalmente, a Organização retirou a orientação sexual em comento da lista de doenças mentais, em 17 de maio, data que se comemora o Dia Internacional Contra a Homofobia.
Vale destacar, contudo, que a homossexuailidade, apesar de não ser mais vista como patologia, é tratada de maneiras diversas em diferentes países, razão pela qual, no Brasil, a mesma deixou de ser considerada uma patologia bem antes de a OMS assim determinar: em 1985, o Conselho Federal de Psicologia parou de tratar a homossexualidade como doença; lado outro, na China, o mesmo ocorreu apenas em 2001; e ainda é considerada crime em 70 países.
Especificamente quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, verifica-se que a comunidade LGBTQI+, apesar de amparada pela Constituição Federal, que garante que homens e mulheres devem ser tratados com isonomia, independente de qualquer fator (raça, cor, idade, religião, orientação sexual), ainda sofreu muito para ter direitos básicos reconhecidos, e os mesmos sequer foram reconhecidos em lei, mas sim por jurisprudências.
Em 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a legitimidade de uniões estáveis homoafetivas, por meio da ADI 4.277 e da ADPF 132, reconhecendo que as uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo devem ser equiparadas às uniões de pessoas de sexos opostos. Já em 2013, o Conselho Nacional de Justiça publicou a resolução n. 175, permitindo os cartórios a realizarem os casamentos gays e proibindo-os de se recusarem a converter uniões estáveis homoafetivas em casamentos civis.
Vale destacar que as decisões acima, contudo, foram precedidas de jurisprudências e decisões das instâncias administrativas da Previdência Social, que reconheceram a legitimidade da união homoafetiva e, consequentemente, a possibilidade de o(a) viúvo(a) gay receber pensão por morte de seu cônjuge.
O primeiro passo se deu por meio da Ação Civil Pública 2000.71.00.009347-0, que tramitou na Justiça Federal de Porto Alegre, e reconheceu o direito de recebimento da pensão por morte após o falecimento do companheiro que mantinha relação homoafetiva.
Essa decisão foi importante para que o INSS reconhecesse, portanto, a possibilidade de concessão de pensão por morte ao casal homoafetivo, o que se deu por meio da Instrução Normativa nº 45 de 7 de junho de 2000.
Foi apenas em 2019, contudo, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero como crime no Brasil, equiparando-o ao racismo, e apontando a omissão legislativa em criminalizar atos de homofobia e transfobia, por meio da ADO 26 e do MI 4733.
Contudo, em que pese o reconhecimento vagaroso dos direitos da comunidade LGBTQI+, em instâncias administrativas ou no Poder Judiciário, a inércia do Poder Legislativo, composto por aqueles que deveriam “representar o povo”, é indiscutível, mormente quando se vislumbra que, mesmo após a criação de inúmeras emendas constitucionais, desde 2000 até hoje, não houve qualquer intenção de modificação do texto do art. 226, §5º, da Constituição Federal, que prevê (homofobicamente) que: “ Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Igualmente, apesar de já ter sido aprovado até um novo Código de Processo Civil, após as decisões supramencionadas, não houve qualquer esforço legislativo para alteração ou adaptação do texto descrito no art, 1.514, do Código Civil, o qual prevê “ Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”.
Talvez pareça que a cobrança de uma atuação efetiva do Poder Legislativo seja um simples luxo, mas é importantíssimo termos em mente que direitos de minorias são sempre os primeiros a serem cerceados em momentos de tirania política, portanto, a exigência da prescrição legal de normas que impeçam abusos estatais e/ou administrativos contrários à existência e resistência da comunidade LGBTQI+ é de suma importância para a manutenção e preservação dos (poucos) direitos até agora garantidos.
Não é demais mencionar, inclusive, que o Brasil é o país que mais mata transgêneros do mundo e ainda está no ranking de países onde mais se matam LGBTQI+, valendo destacar que os dados apresentados neste ranking se referem não só aos homicídios, mas também aos suicídios cometidos por indivíduos que não encontram qualquer apoio parental, familiar ou estatal e, portanto, preferem tirar a própria vida do que continuarem nesta sociedade.
(A Secret Love, EUA, 2020, 81 min.)
Documentário | Direção: Chris Bolan | Roteiro: Chris Bolan, Alexa L. Fogel e Brendan Mason
Leia a crítica de Francisco Carbone
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Secret Love é o filme da coluna Direito em Cenas